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domingo, 17 de mayo de 2020

E se a nossa língua estivesse a morrer?

    Marco Neves, comprendendo  e empatizando cos galegos. Poucos portugueses tenhem o conhecemento do que é a Galiza e a sua lingua. 

Peço ao leitor que imagine uma verdadeira catástrofe linguística em Portugal: o português é ainda a língua mais falada no país, mas há outro idioma a invadir as conversas. As gerações mais velhas falam, maioritariamente, português, mas os mais novos cada vez menos. Nas cidades, o outro idioma está espalhado por todo o lado e poucos conversam em português. Em muitas vilas, ouvimos português na boca dos adultos, mas as crianças já brincam na outra língua. Todos aprendem português na escola, mas usam-no cada vez menos. Pondo números à catástrofe: cerca de 70% dos falantes com mais de 70 anos falam português; mas entre as crianças até dez anos, apenas 20% usam a nossa língua. O que diríamos? Diríamos que a língua estava a caminhar para o desaparecimento. Quem se importasse com ela ficaria seriamente preocupado — não que a vida noutra língua não seja possível, claro está. Mas a nossa língua, a língua dos nossos avós, da nossa literatura estaria a desaparecer. Seria, de forma contida, algo triste. Seria uma perda cultural irreparável. Uma catástrofe cultural.
Ora, é isso mesmo que está a acontecer na Galiza: os números que acima referi são reais, mas referem-se ao uso do galego no próprio território onde é a língua própria — e oficial, em conjunto com o castelhano. Todos os galegos aprendem galego na escola. Mas, em casa, é muito habitual termos avós que conversam entre si em galego e netos que conversam entre si em castelhano. Todos sabem as duas línguas, mas o uso é muito diferente de geração para geração. Quem se preocupa com a língua galega, na Galiza, está inquieto. Mais do que inquieto!
O galego tem outro problema. Durante séculos, não foi oficial: só nos anos 80 do século XX se tornou língua oficial, apesar de sempre ter sido a língua da larguíssima maioria da população até então. Ora, na época em que passou a ser a língua da administração galega, havia duas correntes: alguns especialistas defendiam que o galego era uma língua separada de todas as outras e que deveria usar uma ortografia e uma norma que, nas suas escolhas, a aproximavam de certas opções do castelhano. Por exemplo, o uso do «ñ» e do «ll». Uma outra corrente defendia que o galego devia aproximar-se mais do português — afinal tanto o galego como o português descendem duma mesma língua medieval. Esta última corrente, chamada reintegracionismo, defende, no fundo, que o galego e o português são variantes da mesma língua. Um dos grandes defensores do reintegracionismo, nessa época, era o filólogo e escritor Ricardo Carvalho Calero. Carvalho: era mesmo assim que ele escrevia o seu nome nos últimos anos, com uma ortografia muito próxima da portuguesa. Neste vídeo, vemo-lo a defender o galego com um sotaque muito diferente do nosso, mas com palavras e frases que mostram bem como o galego está próximo do português (atente bem nas palavras, não nos sons):

Nos anos 80, acabou por vingar a perspectiva que defendia o galego como uma língua separada do português — embora mesmo nesta corrente o português sempre tenha sido visto, em teoria, como boa fonte de vocabulário. O reintegracionismo, no entanto, não morreu, mantendo-se como corrente minoritária. É possível encontrar livros publicados tanto na ortografia oficial (uma larga maioria) como na ortografia reintegracionista. A relação entre os dois campos foi tensa durante muito tempo. Uns e outros defendem o galego e o seu uso, mas têm ideias diferentes sobre como proteger a língua.
Ora, apesar da diminuição do uso, o galego enquanto língua de cultura e literatura é reconhecido todos os anos no importantíssimo Dia das Letras Galegas — que é sempre no dia 17 de Maio. Todos os anos é escolhido um escritor ou figura galega que sirva de tema para as comemorações oficiais. Durante o ano, a Televisão da Galiza, o Governo Galego e as várias instituições da região organizam exposições, documentários, programas e tudo o que for possível para divulgar a figura escolhida. Previsivelmente, as figuras escolhidas não costumam estar enquadradas no campo reintegracionista.
Até este ano. A Real Academia Galega, instituição que regula a norma oficial da língua — norma que não é reintegracionista — escolheu precisamente Ricardo Carvalho Calero como figura de 2020. Este parece ser um passo, entre outros, de aproximação dos dois campos. Todos reconhecem que o galego precisa de protecção especial. Ora, saber que, em galego, é possível comunicar com os muitos milhões de falantes de português ajuda a dar prestígio social à língua.
Em Portugal, pouco ou nada ouvimos falar destas questões galegas. E, no entanto, o galego — em qualquer uma das suas variantes — está muito, muito próximo do português (em especial do português popular do Norte). Ou bem que é a mesma língua ou a língua mais próxima da nossa.
A nossa língua ou a nossa língua-irmã está a desaparecer aqui bem perto, a norte da fronteira. O galego de hoje em dia descende da língua que falavam os primeiros portugueses — e os galegos de então, claro. Faz parte da nossa história. Encontramos por lá palavras tão portuguesas e tão esquecidas como «asinha» (que os galegos escrevem, muitas vezes, «axiña»). Os galegos usam os nossos artigos, muitos dos nossos verbos, têm uma sintaxe arrepiantemente próxima da nossa. Até têm, vejam bem, a «saudade», assim mesmo, escrita desta maneira (também têm a «morriña», porque nisto das palavras há sempre lugar para mais uma).
Por isso, digo: o Dia das Letras Galegas — principalmente num ano em que homenageia um escritor que decidiu usar «lh» para escrever o seu nome e que defendia a aproximação ao português — é também um pouco nosso.
O que podemos fazer? Nada de especial: afinal, o galego só pode ser salvo pelos galegos. Mas podemos ouvi-los com mais atenção, usar a nossa língua quando conversamos com galegos, começar a conhecer um pouco melhor os nossos vizinhos do Norte, vizinhos que — quando não estão a falar castelhano — falam qualquer coisa que se não é a nossa língua é o diabo por ela.





viernes, 9 de septiembre de 2022

A proximidade entre o português e o galego é um segredo bem guardado em Portugal − e mais ainda no Brasil.

 No dia em que o Brasil faz 200 anos, falamos sobre o português de cá e de lá (e ainda damos um saltinho à origem da língua).

Marco Neves, no "Certas Palavras" . 

     Mais uma vez, não podemos deixar de colar um texto sobre a língua  galega, visto tão acertadamente, como sempre, por M.N.

 

9. De regresso à origem: o galego

Regressemos, agora, à origem. Também sentimos a estranheza da proximidade quando encontramos textos galegos. Reparemos nas primeiras palavras do livro Ela, maldita alma, de Manuel Rivas:

Aquela primavera chegara axiña e en demasía. Á hora do café, pola fiestra que daba á horta, Chemín mirou a festa de páxaros na vella maceira florida.

Um português que não conheça o galego fica baralhado. Neste caso, a expectativa da maioria dos falantes vai no sentido de encontrar diferenças. Assim, a proximidade que existe é surpreendente: a língua dos galegos não parece tão distante da nossa como pensávamos. A proximidade é suficiente para querermos corrigir o acento em «á»… A proximidade entre o português e o galego é um segredo bem guardado em Portugal − e mais ainda no Brasil.

O galego partilha com o português várias características: os artigos definidos, a queda do «n» e do «l» em certas posições, os diminutivos − e muito, muito mais. Quando a nossa fronteira norte foi estabelecida, há tantos e tantos séculos, o material linguístico de um lado e do outro era muito semelhante. Depois da criação de Portugal, a linguagem das ruas transformou-se, a sul, na língua oficial do reino, com gramáticas, norma, uso na Corte − isto, claro, ao fim de alguns séculos, que o processo não foi nada rápido.

A norte do Minho, as pessoas continuaram a falar o que sempre falaram − mas, depois do florescimento literário medieval de que todos ouvimos falar na escola na forma das Cantigas de Amigo, a língua ficou nas ruas, com pouco uso escrito e formal.

Só no século xix, o galego renasce como língua literária − mas note-se que nunca morreu. Esteve apenas a ser usado no lugar onde as línguas nascem, se desenvolvem e morrem: nas bocas dos falantes. Uma larguíssima maioria de galegos sempre usou o galego como a sua língua do dia-a-dia. Se aterrássemos numa rua galega do século xix, seria difícil ouvirmos conversas entre galegos em castelhano.

Quanto ao uso oficial do galego, só o encontramos no final do século xx − precisamente quando o uso real, na rua, começou a diminuir. Hoje, o galego é uma das línguas oficiais da Galiza − mas já é usado por uma minoria da população.

Existem duas normas: o galego reintegracionista − defendido por quem usa a proximidade linguística para reintegrar o galego no mundo da língua portuguesa − e o galego oficial, ensinado nas escolas, usado nos meios de comunicação social e em muitos livros e que encontramos nas placas da estrada quando vamos à Galiza. Este galego oficial usa «ñ» e «ll» (e muitos «x»), enquanto o reintegracionista usa «nh» e «lh» (e o «j»/«g» onde a versão oficial usa o «x»). Mesmo dentro de cada campo, há variações, mas não vale a pena falar delas agora.

10. Uma questão de proximidade

Para tentar mostrar de forma um pouco mais visual a relação entre o português e o galego, uso novamente as pirâmides.

Figura 3 − Pirâmides ligadas pela base

O desenho é uma simplificação, claro. Mas o que quero dizer com ele é que há uma maior proximidade entre as formas populares e informais do que entre as normas. Se a proximidade das normas brasileira e portuguesa nos podem levar a pensar que a língua das ruas está mais próxima do que realmente está, no caso do galego, acontece o contrário: se olharmos para as normas, ficamos convencidos de que estão mais distantes do que realmente estão. É fácil encontrar palavras nos dicionários galegos que são palavras populares em Portugal.

Sublinho a proximidade que existe entre o português de Portugal e o português do Brasil − mas também entre o português e o galego. Uma proximidade que convive bem com as nossas antigas e desejadas separações políticas. Afinal, somos um país antiquíssimo − para quê ter medo do que nos aproxima de outros povos?

 

martes, 3 de diciembre de 2019

De vez em quando um livro. Assi nasceu uma lingua

Venâncio lanza nestes días o seu último libro na Coruña, Vigo e Santiago
Wook.pt - Assim Nasceu Uma Língua

Qual é a origem da língua portuguesa?

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O leitor Paulo Vieira enviou-me esta mensagem:
Ouvi-o na Prova Oral afirmar que a nossa língua vem do galego e estava agora a ler uma notícia do Público sobre os Lusíadas, a que fez referência no artigo da língua bastarda, e nessa notícia é dito que a obra tem uma forte influência do castelhano, língua que aparentemente era muito usada na corte.
Fiquei interessado e gostava de esclarecer quais as origens da nossa língua. Recomenda algum livro sobre o tema?
No final deste artigo, deixo algumas sugestões de leitura.
Mas antes, porque esta compulsão para escrever parece não ter cura, vou tentar explicar aquilo que sei (ou penso saber). Mas tenho de avisar: não sou linguista histórico. Sou um tradutor e professor que estuda linguística por motivos práticos e junta a isso uma paixão pela disciplina.
Pois bem: a verdade é que gosto muito da história da língua — e julgo ser este um tema que nos interessa a todos. Com base no que fui aprendendo ao longo dos anos, mas também com base na leitura dos livros e artigos que refiro no final, aqui fica o meu resumo (os erros, claro, serão meus e não dos livros e artigos — ressalve-se!).

O português vem do galego?

Enfim: todos nós que dizemos falar português e todos os que dizem falar galego falamos qualquer coisa que teve origem nos falares da Galécia, ali no noroeste da Península. Durante séculos, o latim trazido pelos soldados e colonos romanos e adquirido por toda a população foi sofrendo transformações — não as podemos ver em tempo real, porque ninguém as registava ou escrevia, mas, muitos séculos depois, quando finalmente a língua começou a ser escrita, havia nesse território uma língua já formada, com verbos próprios, com formas próprias, com características que a identificam e a distinguem das outras línguas em redor.




Gallaecia
A Galécia romana. A nossa língua terá nascido no triângulo que corresponde, de forma muito pouco rigorosa, à metade noroeste do território a verde.
O que chamavam as pessoas a essa língua que já era, em muitos aspectos, a nossa? Não lhe chamavam nem galego nem português: chamavam-lhe linguagem, com toda a probabilidade. Era a língua do povo. Nós, agora, olhando para trás, podemos chamar-lhe «português», o que não deixa de ser anacrónico, ou «galego», o que não deixa de assustar algumas almas mais sensíveis, ou «galego-português», para agradar a gregos e a troianos (como se esses fossem para aqui chamados). Na escrita, durante todos esses séculos do primeiro milénio, o latim continuou rei e senhor.
Quando Portugal se tornou independente, começámos a usar a língua que existia no território, que era ainda apenas o Norte. Não a escolhemos de imediato, pois nos primeiros tempos o latim ainda foi a língua oficial. Mas, devagar, a língua que era de facto falada começou a infiltrar-se nos textos escritos, às vezes de forma imperceptível, outras vezes de forma mais clara.
O país expandiu-se para sul e, com ele, veio a língua, claro. O português nasceu nesse canto noroeste e expandiu-se até ao Algarve (e, mais tarde, até além-mar). Por alturas de D. Dinis era já a língua oficial.
Depois, no final do século XIV, temos revoluções, a batalha de Aljubarrota… — a nobreza nortenha perde influência, a burguesia lisboeta alça-se à posição de classe dominante (e tudo o mais que faz parte da História). Lisboa é agora a capital e a nação esquece-se que a língua veio do norte, não foi criada em todo o território nacional. O que se falava em Lisboa seria esse galego-português que viera para sul com a Reconquista. Houve, claro, algumas intrusões do moçárabe, a linguagem latina do sul (com muitos arabismos). Mas, nas suas estruturas e características principais, a língua que Portugal assumiu como sua é a língua criada na Galécia: não houve um ponto em que o galego e o português se tivessem separado claramente.

Influências castelhanas no português literário

Não houve um ponto em que o galego e o português se separassem claramente. Mas há, isso sim, algum afastamento da língua padrão em relação ao que se fala mais a norte. Muito desse afastamento fez-se também por causa das influências externas. Com a corte em Lisboa, e durante muitos séculos (na época de Camões, por exemplo), o castelhano teve uma influência que hoje poucos imaginam. Os escritores portugueses também escreviam, muitos deles, em castelhano. Liam em castelhano. A igreja usava muito o castelhano. A corte também usava o castelhano. Era a língua de prestígio. As misturas eram inevitáveis…
Ora, o português popular de todo o país não sofreu estas influências de forma tão marcada. Assim, arrisco-me a dizer que o português popular manteve durante mais tempo uma maior grau de semelhança com o galego do que o português-padrão — talvez por não ter tanta influência castelhana. Principalmente no Norte, o português e o galego mantiveram-se tão próximos que a fronteira era difícil de traçar. Mais a sul, na Corte, na capital, a língua “desgaleguizava-se” (ver artigos de Fernando Venâncio citados abaixo). Para as elites lisboetas, o galego e o português do Norte começaram a soar a português da província. E, no entanto, era de lá que tinha vindo a língua…
Depois, o castelhano deixou de ser uma influência forte no português (aí por volta do século XVIII); vieram então as influências francesas e, já bem entrado o século XX, começamos a olhar para o inglês.
Sim, sempre fomos uma língua que sofreu influências fortes de outras culturas. Podemos não gostar do facto, mas é isso mesmo: um facto. Não fiquem horrorizados: o castelhano também teve vagas dessas, o francês idem — então o inglês nem se fala. Não percam muitas horas de sono com isso — e, depois, a língua vai atrás da cultura, neste ponto: se quisermos uma língua pura, temos de fechar a cultura a influências exteriores. As línguas mais puras são as mais isoladas, as menos importantes.
Para terminar este resumo muito resumido, diga-se que o português-padrão se expandiu de forma fenomenal durante o século XX, com a escola, a televisão, a rádio, a imprensa. Aí, as formas do sul começaram a suplantar as outras formas, que subsistem, mas com menos força. O português começou a tornar-se mais homogéneo (e menos nortenho/galego) — mas tudo isto já é história das últimas décadas…

E o galego?

Bem, quanto ao galego, lá em cima, num país sem corte, uma sociedade rural, não sofreu tanta influência castelhana até muito tarde, embora essa aparente pureza seja apenas reflexo do isolamento da sociedade. Grande parte da população galega, aliás, só terá começado a sentir a invasão da sua língua pelo castelhano quando a escolaridade obrigatória apareceu no horizonte — e a televisão, jornais, etc. Ou seja, para muitos galegos, o castelhano tornou-se influência no século XX (nas elites terá sido antes, claro). Apesar de tardia, a influência do espanhol é avassaladora, claro está. Aliás, chamar-lhe influência será um eufemismo cruel. O espanhol não influenciou o galego: o espanhol começou a substituir o galego. Afinal, o Estado é o espanhol e a escolaridade da população foi em castelhano até muito tarde. Ou seja, nos séculos XIX e XX, o galego levou uma coça de que ainda não se levantou, apesar de, desde os anos 70, o governo autónomo ter, oficialmente, uma política de defesa da língua.
Alguns galegos tentam aproximar a sua língua do português para assim melhor se defenderem do peso do castelhano; outros apostam num galego autónomo tanto do castelhano como do português. Mas que o galego e o português ainda estão mais próximos do que imaginamos, isso é indesmentível: então quando começamos a olhar para o vocabulário popular, aquele que muitos desprezam injustamente, começamos a ver como falamos uma língua que não deixa de ser muito galega.

Em resumo…

… o português tem origem no latim popular falado no noroeste da Península, na Galécia Magna, língua essa a que podemos chamar galego por ser uma língua da zona do Reino da Galiza, uma língua já com características muito próprias séculos antes da existência de Portugal. Ao tornar-se a língua dum estado independente a sul, chamado Portugal, a língua passou a chamar-se português — e com esse nome foi transplantada para os outros países que a falam. Apesar das mudanças a sul, a língua mantém uma forte proximidade com o que se fala a norte da fronteira. Essa língua portuguesa, como é típico duma língua dum país de cultura aberta a outros povos, sofreu grandes influências exteriores: do castelhano, do francês, do inglês… Até hoje. Também nos dias de hoje as formas mais padronizadas do português começam a suplantar as formas mais populares entre a população em geral — enquanto na Galiza, o castelhano avança.
Isto é uma explicação simplificada, claro está. É ainda a minha forma de o explicar: outros dariam ênfases a outras partes ou acrescentariam pontos talvez importantes… Se alguém quiser corrigir, matizar, completar, os comentários estão abertos!
(Proponho ainda que dê uma vista de olhos pelas histórias romanceadas que escrevi e que tentam dar uma ideia do que foi o percurso do idioma nesses primeiros séculos: «História Secreta da Língua Portuguesa».)
Bem, mas a pergunta era outra: que livros de especialistas podemos ler sobre o assunto?
Proponho dois livros breves, recentes, sobre a História da língua:
  • Introdução à História do Português, de Ivo Castro (um livro académico e actualizado, com fartos exemplos concretos).
  • História do Português, de Esperança Cardeira (um livro brevíssimo, editado numa colecção da Caminho sobre temas de linguística).
Proponho também três artigos de Fernando Venâncio sobre o assunto (convém dizer que as aulas que o autor deu na FCSH, este ano, permitiram-me aprender muito sobre as origens da língua):
Adenda em Outubro de 2019: os artigos de Fernando Venâncio que referi acima foram uma amostra das investigações do linguista no que toca à origem da língua. Em 2019, publicou o livro Assim Nasceu Uma Língua, um percurso interessantíssimo pelas origens do português. Fica como sugestão para quem quiser saber mais sobre a pergunta do título.

   Mais recente, 3 dezembro,  na sua presentação do livro na Galiza, aquí uma entrevista na Voz de Galicia.  

Presentação do livro em Braga. 

sábado, 23 de diciembre de 2023

A questão galega e o público português. F. Venâncio.

Por Fernando Venâncio. 

Entre 1997 e 2001, ainda nos alvores da Internet em Portugal, teve lugar um debate sobre a Galiza no fórum «Lusofonia» do portal português Terràvista.

Esse debate (cujos materiais são, actualmente, de acesso restritíssimo) ganha hoje o maior interesse. Isto porque, nele, alguns dos actuais problemas da língua na Galiza foram examinados, até ao pormenor, por um grupo de não-especialistas, galegos e portugueses.

Entre esses problemas, podem citar-se a integração da Galiza nos países lusófonos, a ortografia do galego e a sua relação com o português, as relações políticas Galiza-Portugal, as relações de ambos com a Espanha.

Sublinhe-se o carácter «naïf», não-alinhado, e sobretudo não-organizativo, dessa discussão – uma discussão informada e de um empenhamento exemplar. Uma autêntica lição para hoje.

Fonte: 

  https://observalinguaportuguesa.org/a-questao-galega-e-o-publico-portugues/?fbclid=IwAR3OO_ja6n34n3dUXBWNYnEAKOlbcYtJb6iGdAwOvJDXivKQqSWeAWxO7oY

A questão galega e o público português

Uma experiência na Internet (1998-2001)

in Elias Torres (org.), Actas do VIII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (Santiago, 2005), vol. I, 2008, págs. 557-570

Fernando Venâncio Universidade de Amsterdão

Entre 1997 e 2001, ainda nos alvores da Internet em Portugal, teve lugar um debate sobre a Galiza no fórum «Lusofonia» do portal português Terràvista. Esse debate (cujos materiais são, actualmente, de acesso restritíssimo) ganha hoje o maior interesse. Isto porque, nele, alguns dos actuais problemas da língua na Galiza foram examinados, até ao pormenor, por um grupo de não-especialistas, galegos e portugueses. Entre esses problemas, podem citar-se a integração da Galiza nos países lusófonos, a ortografia do galego e a sua relação com o português, as relações políticas Galiza-Portugal, as relações de ambos com a Espanha. Sublinhe-se o carácter «naïf», não-alinhado, e sobretudo não organizativo, dessa discussão – uma discussão informada e de um empenhamento exemplar. Uma autêntica lição para hoje. Houve, no decorrer dos últimos cem anos, entre portugueses e galegos, contactos que podemos considerar 2 como de ‘diálogo’, e até de ‘debate cultural’. Não muitos, mas alguns memoráveis. Um deles foi o interesse pela Galiza por parte de Teixeira de Pascoaes, e os contactos que, nas primeiras décadas do século 20, ele manteve com intelectuais galegos, com correspondência por vezes assídua e visitas galegas a Gatão.i Assinale-se não haver Pascoaes, que teve saúde, vida e posses para isso, visitado nunca a Galiza. Pensa-se que, delicadíssimo, receava enfrentar-se com as desinteligências entre os seus amigos. Um segundo momento – de todos, porventura, o mais enriquecedor – foi o longo contacto de Manuel Rodrigues Lapa com a cultura galega. Desde 1932, na Seara Nova e variados outros periódicos, e até ao fim da vida, alimentou com os seus numerosos amigos galegos um diálogo devotado, insistente, e por vezes difícil. A correspondência publicada, já volumosa, informa-nos dos bastidores dessa longa conversa pública.ii Entretanto, nos anos 50 e 60, tinham-se dado vários encontros, ou ‘assembleias’, luso-galegos, promovidos pela Real Academia Galega e pelo município de Braga.iii No decorrer dos anos 80, deram-se, sem a presença física de Rodrigues Lapa, mas com ele presente na mente de todos, dois debates, duas mesas-redondas em contexto académico, científico. Em ambos os casos, a discussão centrava-se na questão da língua – nada de admirar, desde o incisivo artigo de Lapa, em 1973, na Colóquio Letras. A primeira dessas mesas-redondas tem lugar em Novembro de 1980, em Trier (Trèves, Tréveris), no decurso do colóquio ‘Sobre a posibilidade de establecemento dunha lingua culta galega’, organizado por Dieter Kremer e Ramón Lorenzo. Participam na discussão Filgueira Valverde, Alonso Montero, Celso Cunha, Paiva Boléo e o próprio Lorenzo, não propriamente os maiores 3 admiradores de Lapa. O debate partiu de um breve texto enviado ao colóquio pelo mestre português. Resultou numa conversa incómoda, de fórmulas calculadas, e mesmo (foi o caso de Boléo) alguma brusquidão.iv A segunda mesa-redonda realiza-se, em Lisboa, em Junho de 1983, durante o ‘Congresso sobre a Situação Actual da Língua Portuguesa no Mundo’.v Nela participa, pela Galiza, Ramón Piñeiro, que se vê contestado por Maria do Carmo Henríquez. Há um enfrentamento, não um diálogo. Esse tinha-se dado horas antes, a pretexto duma comunicação de Pilar Vázquez Cuesta, com intervenções de Pilar García Negro, Francisco Salinas Portugal e da mesma Carmo Henríquez. Discutia-se entre galegos, diante dum público sobretudo português. Ignoro até que ponto os congressos da Agal, realizados entre 1984 e 1996, foram lugar de debate (sublinho, ‘debate’) entre galegos e portugueses sobre a língua na Galiza. Mais provável suponho essa discussão nalgum dos longos serões de um congresso de Lusitanistas, algures no planeta. vi Actualmente, a troca de pontos de vista dá-se em fóruns da internet. Devemos citar os de Vieiros.com, onde Portugal é, com frequência, tema de conversa. Importante, também, é a discussão no fórum ‘Assembleia da Língua’, onde, entre galegos e portugueses, se deram já assinaláveis convergências, e igualmente assinaláveis enfrentamentos, ásperos e instrutivos.vii Mais do que todos, importa citar os fóruns do PGL, Portal Galego da Língua, onde, neste exacto momento, se travam debates do maior interesse e onde se verificam até discussões entre portugueses. Eles duplicam – oito anos depois, e quase ponto por ponto – o debate de que vos venho falar aqui.

A Internet, uma criança

Foi uma polémica viva, animadíssima, que se estendeu por anos, e todavia hoje esquecida. Os próprios que a mantiveram recordam-na como algo distante – embora, quando a referem, ainda o rosto se lhes ilumine. Decorreu num fórum internético entre 1997 e 2001 e nela participaram, com entusiasmo, mesmo com euforia, bastantes portugueses, um ou outro africano, alguns brasileiros e uma mão-cheia de galegos. Importará lembrar que, em 1997, a internet pública era uma criança. E, como uma criança, enternecedora, trabalhosa e cara. Tudo isso era compensado por reconfortantes sensações de descoberta e de pioneirismo. Por felicidade, surge então um ministro português da cultura que cria um instrumento simples, dúctil e gratuito: um «portal» aberto a qualquer indivíduo de língua portuguesa, com páginas pessoais de 2Mb (um luxo!) e variados fóruns de discussão. [Hoje sabe-se que o próprio ministro, um filósofo, não ia muito à bola com a internet. Alguém o terá, portanto, convencido. Agradeça-se aos dois]. O portal abriu em Março de 1997, chamava-se «Terràvista» e tinha um visual e uma arquitectura ainda hoje modelares. Começam então a povoar-se os fóruns. Os de «Gentes e Lugares», da «Noite» e da «Lusofonia» depressa vão tornar-se espaços de eleição. Com a vantagem, para a «Lusofonia», de congregar interlocutores assíduos de vários continentes. Só a Oceânia não contribuirá. Em compensação, a causa de Timor-Leste unirá um dia as mentes. Toda esta entusiasmante conversa, hoje guardada em 11Mb de texto, agarrou e revolveu temas como a regionalização portuguesa, a política interna angolana, o precário relacionamento de brasileiros e portugueses, o 5 Nobel de Saramago, Olivença, a Expo 98, os touros de morte de Barrancos, as relações de Portugal com a Espanha, o mirandês, e Timor, como já se disse. E, como se disse já também, a questão da língua na Galiza. É neste tema que vou centrar-me. Mas, antes de avançar, antes que se julgue que eu fui um dos heróis, o seguinte. Devo a um puro acaso ter sido, em Janeiro deste ano de 2005, posto na pista desse fórum. E foi um puro e feliz acaso que, pouco depois, me depositou nas mãos esse imenso material. Quero ser digno desta escolha do destino, que evidentemente é cego. Faço planos para um livro que conterá o essencial dessa conversa luso-galega que, durante quatro anos, cruzou dia e noite o Ocidente peninsular.viii E mais uma precisão. Como o destino, além de gentil, é avaro, os nove meses de conversa de 1997 ficaram inacessíveis, e podem considerar-se definitivamente perdidos. Não se sabe, assim, quando entram os temas galegos na conversa. Só sabemos que, a 1 de Janeiro de 1998, estão em cena um galego, «Paulo» de seu nome, ou nick, um português de Viana do Castelo, «José Cândido», e o lisboeta «Francisco». Mas o convívio dá aspecto de já vir de longe.

‘Recozinhando’ a lusofonia

Francisco acaba de regressar da Galiza. Tem boas e más impressões. Na Corunha falaram-lhe, diz ele, «em galego sem preconceitos», mas em Vigo quase não o ouviu. Paulo tenta elucidá-lo, e diz que, se as pessoas lhe falam em castelhano, pode bem ser «por cortesia». Um dia, alguém no fórum virá com pormenores e com a explicação. Francisco não é um qualquer. Tem bom conhecimento histórico, domina vários crioulos 6 portugueses, de que recolhe textos na sua página, possui elasticidade e virulência verbais invejáveis, tem um àvontade ideológico visionário, que os interlocutores assimilam à Direita, e a espantosa idade de 18 anos. Faz sua a causa de Olivença, como em breve fará a de Casamança (um enclave lusófono no Senegal), como fará a de Timor. Em semelhante perfil, o interesse pela Galiza cabe à larga. Francisco, que hoje faz um mestrado de sociologia na Grã-Bretanha, atravessará toda esta história. José Cândido, em Viana do Castelo, diz doeremlhe «os senhores de Lisboa» e a sua insensibilidade ao esforço «integrador» galego. Increpa à capital portuguesa a «asfixia» das vogais átonas que, com um «centralismo barrigudo», impôs ao resto do território. E chama à Galiza e ao Minho «dois namorados a quem os pais proibiram o noivado», o que não será o último arroubo lírico no fórum. Paulo, o galego, dá-lhe então o endereço electrónico de certa revista lusófona «feita na Corunha», Çopyright, e José Cândido logo se propõe adquiri-la na Galiza. Paulo terá de lembrar-lhe que a revista tem só formato ‘web’. Não sabemos (eu não sei) quem foram este Paulo e este José Cândido. Ambos, aliás, se somem, sem rasto, logo nesses inícios de 98. Antes de silenciar-se, Paulo lança, em repto, o tema das relações de Portugal com o Estado vizinho. Opina ele que a «aversão» à Espanha «provém de um complexo de inferioridade e algum temor», para ele incompreensíveis. Francisco sente-se atingido e afirma «nada» haver em Espanha «que Portugal possa invejar». De resto, lembra, vem aí a Expo 98 e, adverte, «alguns espanhóis terão alguns dissabores». A Galiza entra claramente nos planos de futuro de Francisco para o país. Para esse «português do mar oceano», convictamente anti-europeísta, a Galiza «vai ajudar a encontrar a simplicidade do Portugal medievo 7 juntamente com um Portugal agrário», assim colaborando no «recozinhar da sopa» da lusofonia. Sim, «talvez seja pela boca ou mão de um galego» que Portugal acorde «para um novo mar». A causa galega tinha aqui o seu profeta, e tanto bastou para se supor Francisco em más companhias. Ele levará meses a afastar suspeitas de conexões à extrema-direita portuguesa, fascista e salazarista, que já então operava na rede e manifestava alguma gulodice pela Galiza. Francisco é, na realidade, todo o contrário do racismo. Ama a sua «Lisboa crioula», resplandecente de africanos e asiáticos, e acha, mesmo, que tudo o que Portugal tem de bom o trouxe de fora. Ali está a Galiza, bem próxima, de onde pode trazer muito. O belicoso tom anti-espanhol de Francisco não recebe nenhum eco nos compatriotas. Os espanhóis «são um povo cordial, educado e com quem se pode trabalhar», diz «Xpto». São «um povo maravilhoso, um povo agradável», diz «Xixa». «A verdade é que nos damos naturalmente bem», diz «Ji». «Acho um óptimo país com quem temos excelentes relações», diz «Re21». «Se os espanhóis se estão a aproveitar, é porque culturalmente são um povo cheio de garra, e é isso que nós estamos a aprender a ter…», diz «Guida». Quando, em Maio, a Expo 98 abrir as portas, Francisco, voz no deserto, há-de apontar ainda o desprezo e ignorância espanhóis pela «especificidade» portuguesa. Perante a espectacularidade da missão espanhola, lançará o slogan: «Vá à Expo, fique em Espanha!»

«200 milhons de almas»

É por então – Julho de 98 – que entra em cena um novo galego, que assina «Outeiro» e propõe ao fórum «um aberto debate sobre os problemas da Galiza, berço da 8 lusofonia». Apresenta a Agal, de que dá endereços postais, e lança um aviso sobre a «dupla moral» do presidente autonómico, Manuel Fraga, que, em casa, persegue o «reintegracionismo» e, lá fora, se felicita da «nossa língua comum». A entrada de Outeiro não passa despercebida. Há sonoras boas-vindas, e Francisco dá mesmo vivas à «galegofonia de 200 milhons de almas». Exacto, «milhons». Volta e meia, o ainda quase adolescente lisboeta redigirá ‘posts’ inteiros em reintegrado, ou o que ele supõe sê-lo, com várias e recreativas contaminações de autonómico. Uma interveniente de um «país lusófono» pede a Outeiro esclarecimentos sobre a perseguição ao galego. Sempre em ‘agal’, ele informa: «Na Galiza, o Estado espanhol está a pôr em prática um processo de substituiçom lingüística. Este consiste em fazer com que os monolíngües em galego-português virem bilíngües em galego e espanhol, como passo prévio para tornar-se depois em monolíngües em espanhol». E lembra o dano feito ao galego por portugueses exprimindo-se, na Galiza, em castelhano. Sucesso certo, teve-o ele com um juvenil brasileiro, Ronald («tenho 17 anos»), de Minas Gerais, que promete não voltar a dizer «Galícia». Outeiro deixará ainda recomendação da leitura, para «informaçom alheia ao conflito», da Gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra e de obras de Lapa. É essa a última intervenção desse galego, que passou fazendo o bem. Iria deixar saudades. A causa do galego ficará agora entregue a Francisco, que lembra a certo «Marquinhos», da Galiza, a necessidade de que o falem «bem», para que o idioma se mantenha. E esse mesmo lisboeta de 18 anos expõe a certa «Ana Mórfica» qual é «a grande aposta do imperialismo cultural castelhano»: «Obrigar o galego a distanciar-se do 9 português, obrigá-lo a utilizar uma caligrafia [sic] diferente, fazendo com que não possa ser aceite na lusofonia e destruindo-o progressivamente, abafando-o na pobreza».

Grandes animadores

É nesse Verão de ’98 que aparecem no fórum dois indivíduos – o português «Omar Salgado» e o galego «Perico» – que irão tornar-se o que até aí Francisco tivera de ser sozinho: os grandes animadores do debate. «Omar» surge perguntando o que é feito do «nosso amigo Outeiro, paladino da lusofonia em terras da Galiza» e sugere visita a uma página galega, a do MDL, Movimento de Defesa da Língua. Mas bem depressa Omar Salgado não tem mãos a medir. Certo «Intruso» insinua andarem ele e Francisco a pactuar com neo-nazis incitadores à anexação «de parcelas de território pertencentes a países independentes» (leia-se, à Espanha). Francisco e Omar, ambos se batem com denodo, ambos desafiam o atacante, expõem os ideais do MDL e igualmente do MSL, Movimento de Solidariedade Lusófona, de que Francisco se diz aderente e que, segundo ele, tem ligações à Agal. Ora, não só não convencem, como o atacante vai receber apoio. «Invadir a Galiza?», escreve o participante «Re21» a Omar. «Ó caro senhor, quer aqui o Kosovo ou a Jugoslávia?». E aconselha-o a visitar a própria Galiza, onde verá que os nacionalistas são «uma minoria das minorias» e que não há «quem queira ser português». Omar Salgado, quadro numa federação desportiva em Lisboa, preparando um mestrado em Estudos do Património, acabava exactamente de regressar da Galiza. Do que ali ouviu e viu, ficara-lhe claro o intento de «repor novo fôlego à língua tradicional e legítima, tendência essa 10 que é combatida pelo poder central». E quanto a sugestões balcânicas: trata-se, não de transferências de soberania, mas do «reconhecimento à legitimidade para o povo galego, que nos é afim, de poder expressar-se na sua língua própria, que é a nossa». Seria preciso muito mais para convencer Re21. «Galego é galego», escreve ele, «e português é português». Há-de repeti-lo, no decurso dos meses, em várias e criativas modalidades – mas com decrescente convicção. A lenta, e por fim espectacular, viragem mental deste português da Marinha Grande, especialista em comunicação internética, é possivelmente o que de mais belo há nesta história. Do outro aparecido, o galego «Perico», tem-se a clara impressão de que, havendo acompanhado a conversa, teve de intervir. É que Re21 persistia em confundir reivindicação linguística galega com fantasmas de anexação e devaneios de extrema-direita, chegando a associar simpatias lusistas com reaccionarismo autonómico. Com visível gosto, «Perico» ensina a Re21 o a-b-c das questões. Fala-lhe sobre a real difusão do galego, sobre a problemática das normativas, sobre a busca da integração do galego na sua área «natural», sobre o sistema autonómico espanhol, o estatuto das línguas cooficiais e o nacionalismo galego. Dá exemplos eloquentes, como o de ter a universidade de Vigo recusado documentos ‘redigidos num idioma desconhecido’. Ou o subsídio que a Junta deu à Mesa pola Normalización da Lingua: cinco mil pesetas, 30 €. De passagem, informa-o de que, na Galiza, ninguém no seu completo juízo pensa em anexar-se a Portugal. Mas mesmo o sentido da pedagogia deste técnico de informática viguês (a quem até os amigos conhecem por «perico», teimosamente minúsculo), pode ser 11 insuficiente quando se acredita que «estes galegos de direita» buscam «a integração em Portugal». [Estas reacções portuguesas à questão galega devem ser olhadas com atenção. Voltarei a este assunto. De momento, baste anotar que, para um português desprevenido, «reintegração» soa a «integração», e que «integração» é facilmente associável a «anexação». De igual modo, «nacionalismo» é, para o português médio, sinónimo de «independentismo», e até de «violência». Atenção, portanto. O que é óbvio para um galego pode não sê-lo, de modo algum, para um português]. Além de bem informado, Perico é curioso e um bom observador. Espanta-o a obsessão (o «desmedido amor») dos portugueses pelos centros comerciais, ou o «orgulho» que dizem ter em serem portugueses. Não tarda, e esse orgulho irá tornar-se aflitivo, quando, em Outubro, Saramago ganhar o Nobel («O Nobel que todos recebemos», «Desculpem, mas somos mesmo bons»). Não tarda, também, e há-de descobrir-se que a Espanha se está apropriando do «nosso» Nobel. Com o aval do premiado, para mais. Mas também Perico tem de acudir a alguns fogos. Re21 tem os galegos que desejam integrar a Lusofonia na conta de «indivíduos com graves problemas psicológicos», pior se pretenderem também adesão à Comunidade de Países de Língua Portuguesa. «Desiluda-se, caro Omar», escreve ele, «tudo não passa de um factor político com um determinado objectivo muito concreto, se pertencessem à CPLP. Era um meio caminho para mais um conflito político e quiçá mais um conflito armado tipo Kosovo. Era obrigar os governos da CPLP a defenderem diplomaticamente os seus [galegos] ideais 12 independentistas. Era, no máximo do impensável, obrigar a uma suposta intervenção militar». Isto obriga Perico a chamá-lo à ordem: «Você, si eu não entendi mal, defínese como de esquerdas e, no tocante ao tema galego, coincide exactamente coas posturas que aqui defendem as direitas». Omar e Francisco apoiam-no. Mas, nitidamente, nenhum vê em Re21 um caso perdido. Ademais, ele diz conhecer e amar a Galiza, e os galegos, e sobretudo as galegas. Agora essa «afinidade» de Portugal com a Galiza, isso é coisa «absurda». No fórum, a questão da adesão da Galiza à CPLP será debatida longa e recorrentemente. Suspeita-se que Fraga bem a desejaria, caso o pudesse fazer, como escreve Francisco, «de cabeça erguida e com uma boa oferta». Isto é, não pedindo, mas a convite. Bastava, aventa-se, que a CPLP criasse, em vista da Galiza, um estatuto de ‘nações em Estado’. Assim, nem Fraga nem Portugal desafiariam o Estado espanhol, e estaríamos todos no melhor dos mundos. Surge, mesmo, uma sugestão: pedir-se a opinião de técnicos independentes, e eles que decidam pela identificação, ou não, do galego com o português. Se o resultado for ‘sim’, também Madrid cantará pianinho.ix

«A tua bandeira cosida à minha»

Entra 1999, e Francisco vai de novo à Galiza. A 8 de Janeiro, ainda en Braga, escreve, folião: «Leixada deixo ao meu amigo Omar uma forte aperta!!!». Em Vigo é recebido afectuosamente por Perico. Dias depois, já regressado a Lisboa, escreve: «Só falei em português e toda a gente me entendeu». Todavia, para seu espanto, nas lojas falavam-lhe sempre em castelhano. Perico explica como as coisas se passam. Um primeiro caso. A pessoa entra num bar e dirige-se ao 13 empregado em galego. O empregado responde-lhe em espanhol. Minutos depois, ouve o empregado falar galego com um colega. Outro caso, ou o mesmo. O empregado pergunta-lhe se é professor. Explicação? É que são os professores quem mais fala galego «‘sem ter porquê’». Mais outro automatismo. Os adultos falam galego entre si, mas a uma criança dirigem-se em espanhol. Outro ainda. Na aldeia falas galego. Mas, transpostos os limites da cidade, mudas também de língua. «Isto, meu caro amigo», escreve Perico, «chama-se auto-ódio e é produto da colonização». Mas, é verdade, «cada vez menos pessoas reagem mal ao serem abordadas em português». Pena, só, que jogadores brasileiros e portugueses, entrevistados em galego, respondam em castelhano. «Um gesto de desprezo pelo país que lhes dá trabalho». E quanto à sua experiência em Portugal, pois bem: falando ele galego, nas ruas, nas lojas, respondem-lhe em espanhol. Ou em inglês. Na melhor hipótese, ele passa por um espanhol que se esforça por falar português. Entretanto, escutando, reflectindo, Re21 vai, pé ante pé, aproximando-se. Começa por elogiar a página do Terràvista que Francisco fez sobre a Galiza. Depois, formula este voto: numa Galiza autónoma, «El Rey deveria hablar galego». Perico responde: «Que o rei fale galego acho bem, mas preferia que não se denominasse rei dos galegos». Sim, dirá dias mais tarde, o problema do galego é de ordem ‘nacional’. «É como se o presidente português antigamente fosse a Angola e dissesse umas palavras em umbundo, ‘porque todos somos portugueses’». É duma exactidão que arrepia. Ao começo da noite de 25 de Abril, Omar Salgado tem uma notícia. Avenida da Liberdade abaixo, desfilou um grupo de galegos com faixas e escritos, que não pôde ler. «Mas vi», escreve para Vigo, «a tua bandeira cosida à 14 minha e agitadas ao vento, prolongando-se uma na outra». Perico sabe que não é a primeira vez, mesmo em Portugal, e informa: «No Primeiro de Maio de 74, nos Aliados, no Porto, havia muitas bandeiras galegas apesar da situação aquém Minho. Todos os 25 de Julho, dia da pátria Galega, e desde muitos anos antes da morte de Franco, há muitas bandeiras portuguesas em Compostela». A aproximação de Re21 vai dar um passo decisivo, e isso a pretexto de Méndez Ferrín. Anunciara o escritor na TV portuguesa a publicação entre nós dum livro em galego, «para dar a conhecer aos portugueses a língua dum país ocupado pelos imperialistas castelhanos». Re21 comenta que, a esse, não se lhe chamará «integracionista [sic] da Galiza em Portugal». Perico informa-o então ser Ferrín, nesse momento, o escritor galego vivo mais conhecido a sul do Minho. E acrescenta que ‘integracionistas da Galiza em Portugal’, não os conhece. Mas Re21 rejubila. Há finalmente um galego que ele compreende: Méndez Ferrín. Um que define com nitidez o ‘seu’ país, a ‘sua’ língua. Perico bem insiste em que, no essencial, ele próprio coincide com Ferrín. Com efeito, ambos visam «o reencontro do mundo galego com o português». Mais: ambos lamentam estar Portugal, «com a sua atitude e a sua cobardia ao respeito de Espanha, a empurrar a Galiza justamente na direcção que Espanha quer». Dias depois, instado por certa «Paula» a pronunciar-se sobre se «os galegos gostariam de pertencer a Portugal», Perico escreve com uma eloquência muito sua: «O achegamento a Portugal é óbvio, pois é o entorno natural do idioma e da cultura galegos. Mas isso não quer dizer que a Galiza queira ‘pertencer’ a Portugal, entre outras coisas porque de ‘pertencer’ estamos fartos». 15

Reintegracionista «com dúvidas»

Em Setembro de 1999, no auge da questão de TimorLeste, Francisco decide ir alertar a Galiza para a repressão indonésia na ilha. Organiza, para isso, uma concentração em Santiago e dirige uma petição ao governo central e aos parlamentos central e autonómicos. Facto é que, no dia seguinte, o parlamento da Galiza apoia uma intervenção internacional. Isso alegra mas não desmobiliza Francisco, que de novo acende velas por Timor no centro do Obradoiro. Quem tudo isto conta é Perico. Ele vinha, aliás, mantendo os amigos portugueses ao corrente do que pudesse interessar-lhes. Assim, informa-os de que o eurodeputado Camilo Nogueira se exprime em galego como língua de trabalho em Estrasburgo, língua que soa português para os intérpretes. Informa-os de que Carlos Casares, o presidente do Conselho da Cultura Galega, acabava de reabrir a questão da ortografia, qualificando de ‘extravagante’ a autonómica. Mas Perico também se queixa de ser o único galego na lista, não lhe agradando ser visto como porta-voz da Galiza. Isso inspira outro galego a intervir. E é assim que entra na conversa «Camilo Magdalena», também de Vigo, um «reintegracionista com dúvidas». A sua primeira preocupação é averiguar até que ponto em Portugal se sabe que a Galiza fala uma «variante» do português. Omar inclina-se para uma generalizada ignorância. «Ji», uma lisboeta que acaba de visitar a Galiza, opina que ali ouviu um idioma diferente do seu. Camilo, licenciado em ciências empresariais, que começou por escrever em português padrão, passa a grafar em ‘normativo’, para trazer melhor informados, diz ele, «os que non saibades de qué vai o conto». Os portugueses 16 não parecem incomodados, e Re21 até rejubila. Em vésperas natalícias, vemo-lo exprimir-se num boleio algo mágico: «Força, Perico e Camilo! Um dia a Galiza será um País Independente e Livre. Continuem a lutar pela vossa própria identidade enquanto cultura e de soberania de vontade mais que virtual. É uma vontade real de um povo, o galego. Um Feliz Natal para vocês dois e para todos os galegos». Quem se preocupa é Francisco, que aconselha Camilo a «experimentar» a norma Agal (e fornece um endereço, hoje de feição pré-histórica). Para convencer o galego da viabilidade da norma Agal, ele próprio, Francisco, tenta utilizá-la. Fá-lo, como já se disse, com grande latidão de critérios. É o mesmo Francisco que, já entrado o ano 2000, debita a seguinte convicção sobre a Junta da Galiza: «Se bem observarmos o [seu] discurso, a ligação mitológica a Portugal não é propriamente abafada, antes exaltada, porque essa é uma óptima arma justificante de existência perante o imperialismo cultural castelhão sobre a aberração portuga, fazendo crer que a Galiza tem a eterna missão de encorajar o seu irmão gémeo a voltar à verdadeira família de Deus Espanha». A frase contém pelo menos um anacoluto, além de vários plebeísmos, e inspirase sãmente na conspiração universal. Mas já é perturbador alguém havê-la produzido. O viguês Camilo volta então a abandonar a «diabólica» norma para aconselhar a leitura de artigos, como um de Valentim Rodrigues Fajim e um de António Tabucchi. Diferentemente de Perico, Camilo não está bem convencido da identidade das línguas, mas vai-se aproximando disso. Advogará primeiro a ortografia portuguesa, afirmará ser o português «o galego culto» (puro Rodrigues Lapa…) e contará ter ouvido em aldeias do Douro ‘um galego muito bom’. Já sobre a intimidade 17 das culturas não lhe restam dúvidas. «Sem nós», afirma Camilo, «não se explica a lusofonia». Com intenção semelhante, havia Perico dito meses antes: «O português somos nós». Re21, cada vez mais entusiasmado, dirige agora uma declaração «Aos Galegos»: «Eu, Luso, sou pela plena constituição de um Estado Democrático Galego. Primeiro, encontrem as vossas raízes, transmitam-nas aos vossos filhos, netos e por aí fora, e daqui a uns anos, quando nós estejamos já feitos em pó, o vosso país há-de nascer. Ou, quem sabe, talvez se assista ao nascimento do País Galiza ainda durante a nossa vida. O Império Soviético também caiu em dias, talvez o Reino de Castela lhe aconteça o mesmo».

«O puto lá do cimo da rua»

A partir de agora, Re21 vai insistir na confluência de pontos de vista com Perico. «As minhas ideias são no fundo as mesmas do que tu no que respeita à Galiza. Finalmente!». Na realidade, o empresário da Marinha Grande, ao apoiar uma independência galega, coincide, não com Perico, mas com Ferrín. Concedido: as questões são complexas, e mesmo paradoxais. É o que Omar Salgado vai exprimir neste ‘tour d’horizon’ dos apoios à causa galega no país a sul. «Espantosamente, em Portugal os detentores dos meios de produção, segundo a ideologia própria da sua classe, acham neo-imperialisticamente que o galego é lusófono, enquanto que a massa trabalhadora, em defesa das mais amplas liberdades democráticas, acha o contrário. Já na Galiza o proletariado, num rasgo libertário contra o jugo castelhano, acha que o galego é lusófono, e os donos do 18 capital explorador acham hegemonicamente o inverso, em defesa da ‘hispanidad’». Também Francisco tenta perceber o enredado da posição portuguesa. Constata uma «‘natural’, instintiva antipatia quando falamos da Galiza» e atribui-a a um «‘natural’ repúdio por tudo o que nos identifique com Espanha», mesmo que só parte dela. E explica: «Identificar Portugal com a Galiza é provar que Portugal é algo que tem a ver com Espanha». É isso que, segundo Francisco, nos assusta. Nada disto pode tranquilizar muito os galegos. E é essa sensação de ‘beco sem saída’ nos apoios portugueses que vai inspirar a Camilo esta página dramática:

Com a chegada da democracia [em Espanha], conseguiu-se que se reconhecera o galego como língua e não um simples dialecto do castelhano. O que ainda não logramos é que se reconheça que o galego e o português são a mesma língua. Para o nacionalismo espanhol é muito difícil reconhecer que uma parte de Espanha fala uma língua estrangeira. Seria o mesmo que questionar a unidade da pátria. Para o nacionalismo galego seria invalidar um dos seus principais argumentos: a existência de uma língua nacional própria. Isso quanto aos galegos. E que pensam os portugueses? Responder a essa pergunta é uma das razões pelas que estou aqui a participar neste foro. E estou a ver que teis os mesmos prejuízos que nós. Se percebi bem – repito, se percebi bem – muita gente sente antipatia pela Galiza porque identificá-la com Portugal é provar que Portugal é algo que tem a ver com Espanha. Se isto é assim, estamos fodidos. 19

Quando o coração está num aperto, a língua torna-se eloquente… E será um Camilo já resignado, e regressado à norma autonómica, que afirmará dias depois:

O que está claro é que a sociedade galega non está preparada neste momento para asumir a idea de que o que falamos sexa simplemente portugués. Non só os españolistas, senón case todo o mundo. Quizá sexa contraproducente plantexar o asunto de frente e subitamente e sexa mellor irmos máis a modo. Por outra parte, tampouco os portugueses sodes conscientes de que hai uns españois alén do Miño que falen portugués.

Um episódio menor vai, ainda assim, reanimar Camilo. Certo «Álvaro» introduzira um tema anódino, mas que Omar Salgado tomaria a peito: o da coexistência, nos portugueses, de sangue «germânico» e sangue «semita». Segundo o interveniente, reina em Portugal algum desprezo pela componente germânica. Depressa se passa à desconversa, mas Omar, divertido, vai estendendo o tema. Aparece então este ‘post’ anónimo e tipo telegrama: «vai pró caralho ó alvaro hitler porco filho da puta nazi». Logo no dia seguinte, aparece um comentário de Camilo: «Duas línguas que dizem da mesma maneira algo como ‘vai pró caralho filho da puta’ têm necessariamente de ser a mesma». A 31 de Maio de 2001, serão encerrados estes fóruns do Terràvista. Sabia-se, estava anunciado. Mas não podia acreditar-se. A última palavra caberá aqui a Re21. Ele foi, de todos, o mais puro, o que nunca teve nada a perder, e que sempre pôde ser instintivo, primário na sua rudeza e no seu lirismo. É um inaudito apelo e um comovedor convite. 20

Estamos numa rua, somos uns putos a brincar, há um que quer brincar connosco, mas nós não deixamos apesar de viver na mesma rua. É tempo de nós, portugueses, deixarmos brincar com a gente o puto lá do cimo da rua. É porque afinal assim toda a rua brinca de uma ponta à outra! E fica uma rua muito mais forte e bonita!

Caros senhores e amigos:

Esta longa e viva conversa entre galegos e portugueses – não universitários, não especialistas, não alinhados – foi conduzida pelo interesse recíproco, pelo empenho no mútuo entendimento. Talvez mais importante ainda: nesse pequeno laboratório duma discussão internética, a questão galega foi, por primeira vez, colocada a um público português. Verificou-se então uma nítida clivagem nas reacções. E se algum erro os galegos pudessem cometer, era subestimarem a complexidade, e os fundos enraizamentos, das atitudes portuguesas. Neste momento, a ‘questão galega’ goza, entre nós, de um interesse residual. Na campanha para as últimas eleições autonómicas galegas, o primeiro-ministro português, José Sócrates, e o futuro presidente da Junta, Emílio Pérez Touriño, produziram um texto conjunto, onde se comprometem a estimular a cooperação transfronteiriça, inter-regional. É, na sua singeleza, o primeiro documento duma ‘política galega’ em toda a História portuguesa. Mas, com isso, ainda está longe de colocar-se em Portugal a ‘questão galega’. Quando um dia tal acontecer, é seguro que encontrará uma imensa reserva 21 de generosidade, mas igualmente um considerável potencial de resistência, e até de rejeição. Isso não precisa de ser fatal. O caso de «Re21» mostra como a rejeição pode ser transformada em generosidade. Mas mostra, também, quanto a generosidade pode, ela própria, coabitar com malentendidos, ao ponto de alimentar-se deles. Serão, sempre, indispensáveis a pedagogia dum «Perico», a informação dum «Francisco», a sinceridade dum «Camilo», a firmeza dum «Omar Salgado». Tenha-se particularmente em conta isto, que é curioso. Uma simples aproximação cultural galega pode, em Portugal, gerar desconfianças. Em contrapartida, uma solução radical, como é a independência da Galiza, consegue levantar autênticos entusiasmos. Compreendese. Se em alguma coisa Portugal se revê, é num país independente, com cultura e língua próprias. Um país arrumadinho, como ele mesmo. O que baralha um português é essa espectacular descoincidência de ‘Estado’, ‘Nação’ e ‘Língua’. Ele descobre, a Norte, um país que é, e não é, ‘Espanha’. Que se reclama de fundas raízes numa História comum com ele, mas provavelmente mal contada. E que fala uma língua que não só difere da do Estado, como poderá ser idêntica à dele, português. É muita areia para a sua camioneta. Mas não se desista. Com pedagogia, com informação, com muita paciência, até os portugueses serão convencidos. 22


Notas !

Veja-se a este respeito: Xosé Ramón Freixeiro Mato, «Unha visión das relacións culturais galego-portuguesas nos anos vinte a través da correspondencia entre Teixeira de Pascoaes e Noriega Varela», Boletín Galego de Literatura, nº 11, 1994, pp. 71-98; «Noriega Varela, poeta lusófilo», Estudos dedicados a Ricardo Carvalho Calero, vol. 2, Parlamento de Galicia / Universidade de Santiago de Compostela, 2000, pp. 275-299; Eloísa Álvarez e Isaac Alonso Estraviz, Os intelectuais galegos e Teixeira de Pascoaes. Epistolario, Sada-Corunha, Ediciós do Castro, 1999; Isaac Alonso Estraviz, «Relações de Teixeira de Pascoaes com escritores e intelectuais», Portal Galego da Língua, VII-2003. !! Maria Alegria Marques e.a. (org.), Correspondência de Rodrigues Lapa. Selecção (1929-1985), Coimbra, Minerva, 1997; Manuel Rodrigues Lapa, Cartas a Francisco Fernández del Riego sobre a cultura galega, Vigo, Galaxia, 2001. iii Cf. José David Santos Araújo, Portugal e Galiza: encantos e encontros, Santiago, Laiovento, 2004, pp. 160-163. !” «Mesa redonda: ‘Sobre a posibilidade de establecemento dunha lingua culta galega’», Dieter Kremer e Ramón Lorenzo (eds.), Actas do Coloquio de Tréveris ‘Tradición, actualidade e futuro do galego’, 1980, Xunta de Galicia, Santiago, 1982, pp. 236-248. v Actas do Congresso sobre a situação actual da Língua Portuguesa no Mundo (1983), Lisboa, Icalp, vol. I, 1985, pp. 129-135 e 439-448. vi Para os propósitos desta charla, interessam contactos, em tempo real, sobre a cultura e a língua na Galiza, e de que tenha ficado documentação. Como já se viu, tenho nessa conta a correspondência. Mas excluo tipos de encontro noutro suporte, ainda que do maior interesse, como os números especiais de revistas que, de um lado e outro do Minho, se foram fazendo. Uma lista com treze títulos figura abaixo num Apêndice. Agradecem-se achegas. 23 vii Só uma sugestão de passagem: poderia ter interesse rastrear as ligações que se vão estabelecendo entre bloguistas galegos e portugueses. Entre o norte e o sul do Minho observa-se, nesse terreno, uma conexão crescente. viii Terá o título de Uma conversa a Ocidente. Portugueses e galegos na internet (1998-2001). ix O idioma não é, nem de longe, o único tema de conversa entre galegos e portugueses. Nem poderá ser, quando Re21 afirma só portugueses e cabo-verdianos saberem o que é a ‘saudade’. Perico tem de informá-lo de que, antes de ser portuguesa, já era galega. Outro assunto que animou as conversas: a decisão da TAP de diminuir o serviço internacional no Porto. Era uma medida que, acentuando a macrocefalia de Lisboa, privava a própria Galiza de nítidas comodidades. Para mais, com uma ligação por via-férrea calamitosa. «Ir de comboio de Vigo ao Porto», escreve o técnico informático, «é a coisa mais parecida a uma viagem Moscovo-Shangai». E como se chama a ponte que une Arbo a Melgaço? «Ponte Manuel Fraga Iribarne». Enfim, um mal menor. 24


Apêndice Números especiais / Dossiers

Seara Nova, número dedicado à Galiza, coordenação de Rodrigues Lapa, nº 425, 7-II-1935 Seara Nova, ‘Homenagem a Castelao’, coordenação de Rodrigues Lapa, nº 1204-1207, 3 a 24-II-1951 Quatro-Ventos. Revista Luísada de Literatura e Arte, 1954-1957, 1959-1960, 1999-… Céltica. Cadernos de Estudos Galaico-Portugueses, Porto, [1961] Vértice, número dedicado à Galiza, nº 367/368, 1974 Nós. Revista galaico-portuguesa de culturas das Irmandades da Fala de Galiza e Portugal, Braga-Pontevedra, 1986-… Colóquio Letras, ‘Nós. A literatura galega’, coordenação de Pilar Vázquez Cuesta, nº 137/138, 1995; nº 139, 1996 [recenseado em: Yara Frateschi Vieira, «A literatura galega e nós», Jornal de Letras, 28-VIII-1996] 25 A Nosa Terra, suplemento ‘Rodrigues Lapa (1897-1997)’, nº 806, 27- XI-1997 Anto, ‘Galiza’, Amarante, nº 2, 1997 Nova Renascença, ‘Homenagem à Galiza’, coordenação de Luís G. Soto, XXX, nº 72-73, 1999 Tempos Novos, ‘Portugal, tan lonxe e tan perto’, nº 51, 2001 Mealibra, Antologia de poetas galegos, coordenação de Carlos Quiroga, nº 13, 2003/2004 Periférica, ‘Portugalego?’, nº 13, 2005


 

 

viernes, 1 de mayo de 2020

Falando da lingua. O bionormativismo, Carvalho Calero e mais cousas con Vitor Freixanes.


Víctor Freixanes: “Carvalho Calero é a crónica do galeguismo do século XX”entrevista no PGL

Carvalho Calero acabou de ser escolhido como figura homenageada para as Letras Galegas de 2020. Esta era uma reivindacação contínua de diversos movimentos sociais que, anos depois, é satisfeita. Como avalias esta resolução por parte da Academia?
Há tempo que a Academia é ciente de que a figura de Carvalho Calero não podia ser adiada nem marginalizada. Não deixa de ser uma injustiça histórica que não se reconheça o compromisso, o trabalho e a vida que este homem dedicou à cultura, à literatura, à língua galega… Mesmo com obras como a História da Literatura ou como a sua própria significação como primeiro catedrático de Língua e Literatura Galega na USC em 1972. Foi professor de muitos de nós, a mim leccionou-me Língua e Literatura Galegas… É certo que havia uma história detrás de desencontros, digamos assim, entre uns setores da Academia e o próprio Carvalho Calero e as suas posições arredor da língua na última etapa da sua vida. Eu acho que a nova sensibilidade da Academia está em que isso é um capítulo que forma parte da história e da pluralidade democrática dum país. E, portanto, o currículo e a memória histórica de Carvalho Calero não a vamos discutir. Havia que encará-lo com clareza, com transparência, com naturalidade e, também, aproveitando, não o oculto, que esse ano se cumprem 110 anos do seu nascimento e 30 desde a sua morte. São esses números redondos que dão pé a dedicar-lhe o ano a Carvalho Calero, que ademais também coincide com a reclamação que fizemos já ao Concelho de Ferrol para que restaurem a sua casa, de quem já vimos boa disposição. É uma oportunidade, era algo que até eu tinha que assumir.
“A Academia é ciente, desde há tempo, de que a figura de Carvalho Calero não podia ser adiada nem marginalizada”
Foste aluno dele? Como era ele como professor?
Era um professor… distante. Assim o via eu. Distante… mas muito respeitoso. Tanto que era distante. Entendes? Não sei se também era tímido, porque essas cousas… nunca sabes. Nós éramos rapazes e ele era um senhor com toda a respeitabilidade detrás. Para mim, foi a primeira pessoa que me sistematiza o galego em chave língua culta, língua a estudar… Porque uma cousa é esse galego ventureiro, esse galego que todos temos de orelha de crianças… E mais no meu caso, que sou urbanita. Eu sou uma criança duma vila como Ponte Vedra, não sou um neno de aldeia como Neira Vilas e o seu Balbino. E muitos outros companheiros da minha turma como.. Dobarro, que vinha do Ferrol. Carvalho aí era uma pessoa que nos dava informação muito sistematizada. Tanto é assim que eu dediquei-lhe muito tempo a essa matéria porque ia descobrindo da sua mão as diferentes fases da nossa história e da nossa literatura. No fundo, acho que a literatura não deixa de ser outro jeito de contar a história dum país. Também nós dedicávamos muito esforço, porque era uma época em que estávamos muito sensibilizados pelo tema da identidade e da cultura da língua galega.
“Da mão de Carvalho descobri as diferentes fases da nossa história e da nossa literatura”
Não sei quando foram publicados os primeiros textos do Instituto da Língua Galega mas eu fui aluno de Carvalho no ano 1970 ou 1971, e trabalhávamos com a sua Gramática Elemental do Galego Común. Licenciei-me por volta de 1972 ou 1973 e lembro que na altura ele estava tirando a Cátedra em Madrid, e nós celebramos muito a cátedra porque era a primeira vez que havia esse reconhecimento oficial da língua galega: uma cátedra formal na universidade.
Então… Era um homem distante com os alunos e muito respeitoso com os alunos… E muito metódico também! Ele levava a matéria com uma precisão e um programa absolutamente previsível e documentado. Às vezes excessivo, porque eu lembro que nos examinávamos até das distintas edições de gramáticas ou dicionários galegos que havia ao longo da história. Também era o material que havia… Depois foi autor de várias cousas que eu editei e reeditei em Galáxia. Essa Prosa Galega 1Prosa Galega 2Prosa Galega 3… Que também era um jeito de recuperar, porque havia uma espécie de deformação da visão da literatura galega como muito poética. Rosalía de Castro, Curros Enríquez, Pondal… Ele ia por um caminho de recuperação dos primeiros textos, Fernández de Neira e cousas desse estilo. E a nós interessava-nos muito porque não sabíamos nada [ri]. Na altura a desinformação era total e ele era o único professor que nos orientava. Porque depois havia rapazes novos que se incorporavam nesse momento como Antón Santamarina, por exemplo, mas Santamarina era um rapaz que começava a leccionar aulas e nós fôramos os seus primeiros alunos. Ele leccionava Linguística Geral ou Gramática Histórica. Ramom Lourenço dava Crítica Literária, por exemplo.
“Havia uma deformação da visão da literatura galega como muito poética… E Carvalho procurava uma recuperação dos primeiros textos em prosa”
De facto, o outro dia fui ao Parlamento da Galiza para ver o material dele que há ali, de cara a fazermos alguma publicação de certa relevância e distinta. No Parlamento está toda a biblioteca particular de Carvalho: uma crónica muito bonita, porque a nossa biblioteca também é uma radiografia da nossa história. Em diferentes épocas da nossa vida, vemos que cousas nos interessavam e como íamos comprando livros… Eu às vezes paro diante da minha biblioteca, que é uma imensidade e uma espécie de armazém impresentável, mas posso ver fases: a etapa do marxismo-leninismo, a etapa do sindicalismo, a etapa do feminismo… São todas diferentes etapas que formam parte da nossa identidade. E com Carvalho igual, mas ele tem tudo muito organizado, muito limpo, todo o contrário à minha [ri]. Ali há muitos autógrafos dele, que eu saiba não há inéditos, e também há muita correspondência, que também há na [fundação] Penzol, porque Carvalho foi durante muitos anos o filólogo, o gramático e o linguista de Galáxia. Até que se produz o distanciamento, Carvalho Calero é Galáxia. Nas primeiras fotografias de Galáxia dos Conselhos de Administração, assembleias… Sempre aparece Carvalho. Há um livro editado por Galáxia, ademais, que eu recomendo, que é a correspondência entre Carvalho e Fernández del Riego.
“Até que se produz o distanciamento, Carvalho Calero é Galáxia”
De facto, em outras entrevistas oferecidas por antigos alunos ou discípulos de Carvalho, eles afirmam que esse distanciamento de Fernández del Riego foi uma questão que lhe causou grande dor.
Sim… Porém, vou dizer uma cousa. Não sei se foi um distanciamento. Seguramente o foi. Pronto, igual que agora. Estamos todos na mesma causa mas depois saltam faíscas. E houve faíscas históricas entre Isaac Díaz Pardo e Luís Seoane, que eram os dous criadores do Laboratório de Formas e de Sargadelos. E houve faíscas muito gordas. E isso forma parte um pouco da vida. Os amigos às vezes discutem… Porém, com Ricardo Carvalho Calero é muito curioso. A primeira vez na que há constância na Academia de que há uma proposta para que Carvalho Calero seja homenageado no Dia das Letras Galegas é em 2005, e a proposta de Jose Luís Franco Grande e Francisco Fernández del Riego. A segunda vez foi no ano seguinte, a proposta minha e de Francisco Fernández del Riego, que o propomos para debate numas reuniões prévias consultivas, antes de entrar em pleno. Antes não era como agora, que está muito mais regulamentado. Agora deve haver uma proposta documentada com méritos e ser assinada por, no mínimo, três académicos… Porém, quando eu entrei, havia propostas que eram feitas ali, ou alguma chegada de fora à qual alguém podia aderir… E depois fica constância nas actas e nos debates. Por isso o sabemos, porque não há nenhum outro documento.
“A primeira vez que Carvalho Calero é proposto na Academia para ser homenageado no Dia das Letras Galegas é no 2005, com Franco Grande e Fernández del Riego”
E essa proposta minha para dedicar as Letras a Carvalho foi por Fernández del Riego. E a de Franco Grande também. Paco del Riego pediu-nos a ambos. Ele ademais quase se enfadou comigo quando lhe disse: “Paco, olha, há que ter cuidado porque abrimos um melão”. Ele insistia muito no de Carvalho Calero. Dizia que não queria morrer sem ver Carvalho Calero como figura homenageada no Dia das Letras Galegas. E claro, eu dizia-lhe aquilo, não o oculto, porque eu na altura ademais era director de Galáxia.
Galaxia?
Vamos ver, Galaxia… Porque a Academia não tem certos problemas, mas uma editora sim. Em que ortografia publicamos a Carvalho? Claro, esse é um tema importante. Paco tirava importância e dizia que não fizéramos caso, que só fora uma última época, que foram caralhadas… E não, não, não são caralhadas. Afinal, da vida das pessoas, elas vão mudando de posição e isso não é uma caralhada. Portanto, nós temos que saber em que ortografia publicar Carvalho. E se publicamos Carvalho em ortografia reintegrada… abrimos um problema na escola. Quer dizer, abrimos um problema que igual não é grave ou igual sim. Nós temos que ser cientes do que fazemos. Não somos umas crianças nem uns irresponsáveis. E eu falava como diretor de Galáxia. Depois passou o tempo, reformei-me e agora há outro diretor. Agora, nós quando decidimos o de Carvaho, que a mim também me preocupava muito este tema, também lhe perguntei à família. E disse “olha, sem me meter na vossa vida… quero que saibais que há muitas editoras que vão fazer essa pergunta”. E Maria Vitória disse que isso era um problema das editoras, que eles não se iam meter aí, disse que as editoras podiam quer editar na norma oficial quer editar nas propostas ortográficas de Carvalho. E aí ficou.
“Fernández del Riego tirava importância à escolha ortográfica de Carvalho, dizia que só fora uma última época, mas não são parvadas. Na altura, se publicássemos a obra de Carvalho em reintegrado… abriríamos um problema na escola”
A família apoia que seja feito em reintegrado, não?
Sim, sim… Não se opõe, nem a uma, nem a outra. Nem que se faça na oficial, nem que se faça em reintegrado. E isso são decissões que deve tomar a própria editora. Se eu edito Scórpio… Scórpio está escrito originalmente numa ortografia que deve ser respeitada. Essa é a minha opinião, como editor. E estou a falar a nível particular. E se for a História da Literatura Galega… publicá-la na oficial. Depois há cousas de Carvalho que têm muito interesse e outras pelas que passou o tempo. Isso também forma parte da história.
Dizes que a primeira vez que foi proposto foi em 2005 por Franco Grande e Fernández del Riego, mas não foi até 2019 que foi para diante…
Bom, mas isso passou-lhe a muitos.
Que pensas que impediu em passados anos dedicar as Letras a Carvalho?
Bom, pois é que de fundo…
Haveria medo a ‘abrir esse melão’?
Claro, eu penso que sim, e depois também havia histórias pessoais, nas que não vou entrar porque cada um fala da feira como a viveu e como a sofreu. O próprio Carvalho também a sofreu. Ou seja, sempre que há um conflito há pelo menos dous ou três afetados. E isso estava aí. Há sensibilidades muito diferentes. O que acontece é que a Academia também vai mudando à medida em que se vai incorporando gente nova que tem, temos, outra perspetiva das cousas. E depois o tempo permite também abordar com muita mais tranquilidade cousas que foram vividas intensamente, porque tu és muito nova mas eu que vivi a guerra ortográfica há trinta anos… aquilo era um incêndio.
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Agora não vivemos isso?
Não. Vivíamos cousas nos institutos… patéticas. E há gente ferida dessa guerra. Quer dizer, houve gente que levou o que era uma discusão académica e intelectual às aulas. E então havia alunos que recebiam dum professor uma proposta ortográfica, na aula do lado o professor de galego leccionava outra… Na aula do lado, outra… Depois entre eles discutiam… E os alunos e alunas, que eram crianças de 14 anos, tomavam isso como se fosse brincadeira, e os pais… penso que era um problema de novatos.
Chamou muito a atenção que na notícia das Letras Galegas para 2020 o nome de Carvalho fosse escrito na normativa oficial, não com V e LH.
E entre parênteses pusemos o nome em reintegrado.
Depois.
Não, foi no primeiro momento, mas o sistema informático da Academia não permite introduzir parênteses [ri].
Aí têm um problema.
Não, bom, agora resolvemos isso: entre colchetes… E agora está corrigido.
Que destaca da sua figura e da sua obra? Quer a nível individual quer como presidente da Academia, como vai ser abordado o ideário linguístico de Carvalho?
Bem, vamos ver… A Academia tem dous momentos, além doutro tipo de atividades como são o Portal das Palabras ou a Primavera das Letras, que está pensado para escolas de primária a iniciativa dos professores. Destes dous momentos um é a celebração do Dia das Letras, com a intervenção formal dos académicos ao redor da figura de Carvalho. Então escolheremos três académicos que abordem a figura de Carvalho Calero desde diferentes perspetivas. E depois, em segundo lugar, haverá um simpósio académico onde haverá distintas vozes sobre a sua figura e onde todas as vozes que tenham algo que dizer, podam dizê-lo. Se têm que estar três dias, serão três dias, mas todo o mundo com uma posição documentada e consistente, terá espaço para poder dizê-lo com a madurez que permite hoje uma sociedade, incluso uma sociedade galego-falante, que pode abordar estes temas com uma tranquilidade, documentação e conhecimentos que não existiam há trinta anos.
“Todo o mundo com uma posição documentada e consistente terá espaço e voz no simpósio académico de Carvalho Calero”
Então isso também vai permitir que a figura de Carvalho Calero seja abordada dessa perspetiva, mas não é a única perspetiva de Carvalho. E isso também é importante. A Academia não aborda Carvaho Calero pelo tema da proposta ortográfica, senão que homenageia a sua figura histórica. Carvalho Calero é, de forma semelhante a António Fráguas, a crónica do galeguismo do século XX. Carvalho Calero viveu desde o período pré-Guerra Civil e República, porque é um homem muito comprometido com a República, o galeguismo do momento, o Seminário de Estudos Galegos e o Partido Galeguista… participa inclusive com Lois Tobio na redação do anteprojeto do Estatuto de Autonomia que promove o Seminário… Quer dizer, há uma série de atividades objetivas de Carvalho. E depois, na guerra, ele é uma vítima da repressão, com todas as consequências. É uma situação muito grave que eu penso que o afetou emocional e psicologicamente, afetaria a qualquer pessoa.
Depois, é um homem do que chamaríamos o exílio interior. Pratica um bocado -como aconteceu ao próprio Antonio Fraguas e Fernández del Riego- a clandestinidade. Ele viveu exercendo de professor às escondidas para manter a sua família. Foi uma situação muito dura. Teve a sorte de ser acolhido por António Fernández no [instituto] Fingoi, e aí está atuando já o grupo Galaxia, os que foram os fundadores de Galaxia. E ele não pode exercer como professor e é contratado como gerente! Ali chegaram também para serem professores pessoas como Ferrín ou o próprio Bernardino Graña. E nesse momento começa a trabalhar com Fernández del Riego –porque eram amigos íntimos– na História da Literatura Galega Contemporánea. E nesse livro de correspondência entre os dous é impressionante ver como trabalham, com que constância, com que método, com que teimosia… É um retrato dos dous, como procuram os livros, como os vão pedir… Claro, porque agora tudo está na Internet e há umas bibliotecas muito boas, mas daquela não havia nada. Encontrar um original de Proezas de Galicia de Fernández Neira ou encontrar uns documentos do que podia ser o galego patriótico da guerra contra os franceses, ou os primeiros textos em língua galega dos Precursores… Aí também estava Penzol, que estava comprando muito livro e dotando o que depois seria a partir de 1963 a biblioteca da Associação Penzol, e todos estavam aí puxando e construindo…
Ou seja, sou consciente de que Carvalho era o historiador da literatura e o gramático, porque foi a quem lhe encarregaram a Gramática do Galego Comum, de Galáxia, porque antes não havia nada, era uma seleção. E com esse material, Carvalho é quem nos dá aulas a nós na faculdade.
Além do trabalho académico sobre a literatura e a gramática, há trabalhos dele vigentes ainda agora, como as suas análises e diagnósticos sobre a situação sociolinguística do país.
Bom, eu penso que há muitas cousas, na minha visão pessoal, que o tempo passou por elas. Inclusive quanto ao critério literário, hoje seria abordado doutra maneira; mesmo a sensibilidade de Carvalho sobre diversos autores como Eduardo Blanco Amor é discutível, mas opinável, porque todo o mundo tem direito a ter uma opinião e isso não desmerece a sua figura… Ora, para mim, e agora falo a título pessoal e não como presidente da Academia, porque a Academia tem umas posições que são de todos e eu devo respeitar e defender… Para mim Carvalho abre um debate que é o da posição da língua galega na família histórica do que chamaríamos o romance hispánico occidental, que é Portugal e Galiza, Brasil… Este é um universo que acho uma riqueza, certamente.
Nós estivemos agora em Rio de Janeiro e fomos recebidos pelo presidente e toda a Academia de Letras, com Nélida Piñón… E ela disse uma frase muito bonita, disse “eu sou uma nena de aldeia, e uma nena de aldeia galega, e quando falava galego ali e logo quando cheguei à literatura portuguesa descobri a língua galega da minha infância, era como viajar pelas profundidades íntimas da língua portuguesa”. É uma história bonita, porque ali também saiu um tema no que insistimos muito, porque agora a filologia portuguesa com o tema do galego não acaba de entender que o português é filho daquele galego medieval. Então há uma corrente moderna filológica portuguesa que fala do português arcaico. Quer dizer, Mendinho, Pedro da Ponte, Bernardo Bonaval, Airas Nunes… escreveram em português arcaico. Que demo é o português arcaico!? Porquê? Porque não são capazes de reconhecer que a sua identidade linguística-nacional…
“Em Portugal não são capazes de reconhecer que o português é filho daquele galego medieval, têm um discurso obsoleto”
Claro, porque esse relato atenta contra o seu discurso nacional.
Sim, mas esse discurso nacional está obsoleto! Essa ideia de que nós somos uma nação… às vezes, as nações são construções históricas que podem ser alimentadas doutras muitas cousas. A Venezuela é uma nação, Argentina é uma nação… e falam uma língua vinda doutro sítio. Podiam falar outra cousa, podiam falar mapuche, sim, mas não falam mapuche. E os portugueses falam e desenvolveram aquela língua original. E nós, na nossa intervenção, insistimos muito em situar historicamente o galego nesse discurso. Os brasileiro entendem muito bem isto, mas entre os portugueses há de tudo… E o que não se conhece, não se ama. Então nós, para enfrentar estes temas, devemos criar espaços de relação, conhecimento e comunicação. Eu trouxe à Galiza pola primeira vez, quando dirigia o grupo Anaya, o Cardoso, Pepetela, Antunes… que nem sabiam que existia este país. Como é possível que a gente ainda pense que a Galiza é uma espécie de território perdido de quatro aldeias ao norte de Trás-os-Montes… Como é possível? Nós somos um país moderno, um país que faz cinema, que faz literatura e que faz música e que tem que estar situado na Europa do século XXI. Nós não somos um recanto folclórico nem uma reserva. Esse discurso é importante defende-lo com firmeza, e a partir de que se criem relações… depois a própria vida vai criando dinâmicas entre as pessoas, os grupos e os interesses que estão em jogo sempre na expressão duma coletividade.
Mas… que oferece Galiza para toda a Lusofonia?
Oferece na medida em que nós sejamos capazes de criar. A ti interessa-che um país ou uma cultura pela sua criatividade, pola capacidade que tem para fazer cousas que interessem. Uma boa cinematografia, uma boa literatura, uma boa ciência, umas boas artes plásticas e cénicas, uma boa música… Não por mudar o código linguístico mudamos o país. Essa é a minha opinião, porque para essas… também mudamos todos para o espanhol, e eu não estou por essas! O que temos que fazer é trabalhar em nós, e aprofundar em nós, e fazer com exigência um produto crítico –e com autocrítica– que seja competitivo nos espaços internacionais, e depois criar –e aqui estamos a falar de política– os circuitos de distribuição, de difusão, de informação, de indústria… para que esse produto seja conhecido no mundo.
Não por mudar o código linguístico mudamos o país.
Quando fui a Portugal com Manolo Lombao para falar com as televisões, para tentar convencer a RTP do Porto de poder estabelecer colaborações entre as televisões da Galiza e Portugal… não conseguimos. Eles no único que pensavam era em Madrid, Madrid e Madrid. O que queriam era falar com Madrid. Era uma conversa distendida com autoridades da RTP. E num momento dissemos “vamos ver, não podemos incorporar os companheiros de Brasil?”. Nesse momento ouvimos dizer: “O Brasil roubou-nos a língua”. Textual. E eu já disse: “Aqui há um problema psicológico muito fodido” [ri]. Quer dizer, a única forma de falar estas cousas é falar em pé de igualdade, e o único jeito de falar em pé de igualdade é ter um produto competitivo, moderno, exigente e capaz de despertar o interesse no mundo. E ter o país atrás de nós. O que não podemos, e este é um aspeto do problema, é construir uma fórmula de tubo de ensaio, uma língua de universidade ou e laboratório, por muito perfeita que pareça, e que depois o falante do Val Minhor, ou o falante da Terra Chã ou o falante de Bertamirães diga… Isso não tem nada a ver comigo.
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Nos anos 70, com os artigos de Rodrigues Lapa ou o manifesto dos 13 de Roma, Carvalho começou a mostrar mais atenção à proposta reintegracionista. Dizes que certas análises de Carvalho ficaram desatualizadas com a passagem do tempo mas…
[Interrompe] Não foi até os anos 80; nos anos 70, quando era o meu professor, nunca falava do tema nas aulas. Foi nos 80 quando mostra essa postura.
Quando começou o ostracismo.
Sim, bom… Houve discrepâncias com o grupo Galáxia, com o próprio Fernández del Riego, Ramón Piñeiro e gente da Academia.
Esta necessidade da que falas de projetar o galego para o exterior cumpre formulá-la também a partir de uma releitura da situação do galego, que mostra uns dados realmente alarmantes. São estes dados uma constatação do fracasso da política linguística das últimas décadas?
Sim, mas isso não é solucionado com um problema ortográfico. Não é um problema ortográfico.
Mas Carvalho, por exemplo, no seu Do galego e da Galiza já prognosticava estas questões…
Mas não só Carvalho! Alonso Montero no famoso Informe Dramático sobre a língua galega diz isso claramente.
Carvalho prognostica a situação que vivemos agora e propõe soluções para a crise linguística inserindo o galego no sistema linguístico da Lusofonia. Então, com isto em mente… o futuro da língua passa pela Lusofonia? Ou, como disse Castelao, a nossa língua floresce em Portugal?
Eu, como disse antes, penso que o futuro do galego passa pelo galego. Eu penso que o futuro do galego passa por uma Galiza moderna que crie produtos culturais e de todo o tipo que situem a Galiza como uma sociedade desenvolvida que despertem interesse. E que ademais as galegas e os galegos estejam participando desse discurso. Esse é um problema político que temos atualmente, porque não conseguimos construir um discurso motivador onde o país se reconheça. Na medida em que isso seja produzido, a Galiza vai adquirir peso específico próprio, porque isso também está em função das criações que tivermos, das que difundires e espalhares. Logicamente, eu sou partidário de abrir espaços de relação com essa família a que pertencemos.
“Um problema político que temos atualmente é que não podemos construir um discurso de ilussão onde o país se reconheça. Logicamente, eu sim sou partidário de abrir espaços de relação com essa família à que pertencemos “
Achas então que é uma estrategia acertada? Porque as instituições…
Que estratégia?
Reconhecer o princípio de irmandade com o português e fomentar…
Sim, sim, mas temos de ter o país atrás de nós, porque temos que explicar ao país a utilidade de tudo isso. E temos ademais que reconhecer que o país tem que se reconhecer nesse idioma, e o idioma de além Minho é uma língua irmã, mas não é a língua que estamos a falar agora.
“A única forma de falar em pé de igualdade com o resto do mundo é ter um produto competitivo, moderno, exigente… e ter o país atrás de nós. Não podemos construir uma língua de laboratório e que depois o falante de Bertamirães não se sinta representado”
Com estes dados de falantes na mão… Pensas sequer que o país se reconhece no galego?
Mas não é por um problema ortográfico! Não se reconhece no galego porque, e isso leva-nos a outra questão, há muita impostura no galego. As classes dirigentes e os setores dirigentes da sociedade galega predicam uma cousa e fazem outra. Eu não posso ir a determinado galego, que não vou dizer quem, e esse político com uma alta responsabilidade, sai do gabinete e com a sua secretária, com o seu chefe de gabinete… fala em castelhano. Isso a sociedade vê-o. Então isto é uma grande impostura, é uma representação. E nós temos que conseguir que a sociedade viva a língua e seja ciente da própria coerência das classes dirigentes também.
Esse “viver a língua” é muito abstrato; parece que interpelas a emocionalidade e…
Não, e também à utilidade económica e…
E a utilidade económica do galego passa pola Lusofonia?
Hum… Sim, sim ou não.
Uma das teses de Carvalho era que não seria possível convencer através da ligação emocional, mas com motivos práticos…
Não sei, não acredito nisso… Volto ao de antes, o galego é o galego, o galego não é o português. O galego não é o brasileiro nem é o angolano. Então, essa afirmação tem que partir de em que medida podemos nós assumir ou refletir sobre modificações. Bom, temos que valorar isto com a cabeça fria e saber a que nos arriscamos se introduzimos modificações desse tipo, que têm que ver com a indústria da cultura e da comunicação e, sobretudo, com a capacidade dos cidadãos e cidadãs para se reconhecerem nessas fórmulas. A mim assusta-me muito porque, igual que na política, trabalhamos num tubo de ensaio e pensamos que como nós somos muito inteligentes o resto das pessoas têm que dizer amém. E não, porque as pessoas vão por outro lado.
“O galego é o galego, o galego não é o português nem o brasileiro nem o angolano”
Carvalho Calero era sócio de honra da AGAL, que propõe o modelo binormativista. Qual é a tua impressão sobre esta proposta?
Eu penso que a fórmula binormativista não é acertada, porque uma língua é uma norma. E já sei que se fala do luxemburguês e do norueguês, que são dous casos muito específicos e penso que não têm que ver com o galego. Segundo, nós, sobretudo, para as escolas e o sistema educativo, para os contratos, a Administração pública, para os contratos, os notários e os tribunais… Isso temos que tê-lo muito claro, tem que haver uma única norma.
Antes falavas duma preocupação de tipo emocional, ligada com “viver a língua”, e agora expressas uma preocupação de carácter muito mais prático.
Não, não, sigo estando na questão prática!
Então, fazendo um exercício de imaginação, partindo duma hipótese… Se instaurássemos o binormativismo, qual achas que seria a melhor forma de instaurá-lo? Seria melhor aplicá-lo como segunda língua estrangeira através do português, dentro do próprio currículo de galego…?
Não, eu não estou pelo binormativismo. Não. Não. Estou por uma norma única e oficial.
Mas imagina…
Não, não, espera, porque eu isto já o falei. Eu sim estou porque o português entre no sistema educativo como uma referência… que saibam que existe uma língua irmã distinta que está muito próxima da nossa e que nos permite uma projeção também internacional, através dela, no sentido prático: o português. É o que digo eu, por exemplo, em relação à revista Grial. Em Grial temos duas línguas: o galego e o português.
Então estarias a favor de introduzir o português na educação, como dita a Lei Paz Andrade?
Sim, eu apoio a Lei Paz Andrade. O galego, na matéria de galego, e agora, se quereis estudar português, estudais português.
E introduzir a aprendizagem da ortografia portuguesa dentro do currículo de Língua e Literatura Galegas?
Eu estou de acordo com conhecer o português e estudar o português e que a gente descubra que a língua galega e a língua portuguesa são línguas irmãs e que com muito pouco esforço -que foi o meu discurso de entrada na Academia- tu podes incorporar-te a uns espaços linguísticos e culturais enormes, sem deixar de ser galegos.
“A língua galega e portuguesa são línguas irmãs, e com pouco esforço podes incorporar-te a uns espaços linguísticos e culturais enormes, sem deixar de ser galego”
Pelo que dizes… Achas que há um risco com a proposta reintegracionista ou com o binormativismo de perder identidade ou autonomia própria como galegos? É por isso que insistes em que ‘o galego é o galego’?
Sim. E ademais tem um custo que pode significar perder.
No teu discurso de entrada na Academia falavas das lendas populares da Trabe de Ouro e da “paxariña de Armenteira” como uma representação da tensão histórica perante a encruzilhada vital que a nova modernidade nos enfrenta. [A “paxariña de Armenteira” é exemplo da tentação de se deixar levar perante a insegurança de não saber, “melhor deixar as cousas como estão e não arriscar”, perante o risco, a preparação, o estudo e o conhecimento que exige a Trabe de Ouro.] No teu discurso falas de que “o futuro é um projeto em construção, implica vontade de querer construí-lo”. Continuar a insistir nesse modelo de ‘o galego é o galego’ não será a “paxariña de Armenteira”?
Não sei. Eu não faria essa comparação. Para centrar bem a minha posição, que é o que me interessa: o galego é o galego, e o galego são os falantes da língua galega, e os falantes de língua galega têm que se reconhecer no seu idioma, tanto no uso como no prestígio e na autoestima. A língua é um capítulo mais da capacidade de expressão e criação que tem um país no âmbito da economia, no âmbito da empresa, no âmbito da cultura, etcétera. Na medida em que este país se desenvolva e entre na modernidade, nos desafios do século XXI, este país vai ser capaz de gerar produtos que interessem no mundo. E isso é identidade própria. Nós não precisamos do castelhano para viajar pelo mundo nem precisamos de Lisboa para viajar pelo mundo. Entre outras cousas porque Lisboa não acaba de entender-nos nada bem, igual que Madrid. Brasil, repito, é outra história, há outra sensibilidade. Porque Lisboa e Madrid têm o complexo de império, não são capazes de superar que, claro, “roubam-nos a língua”. Vamos ver, vós não sois proprietários da língua. E os angolanos há tempo que se desentenderam desta visão, já nem aceitam os acordos.
Brasil tem melhor disposição mas ao mesmo tempo não precisa de mais ninguém. É tão imenso que, culturalmente, não precisa de importar nada.
Porque tem uma criatividade imensa. Há países imensos que não acabam de ter capacidade de entrar no mundo. É rico, mas há países muito ricos que estão mortos culturalmente falando. É um país formidável, com uma música e uma cultura impressionante… E para nós, no nosso imaginário coletivo, no da nossa geração, os portugueses eram os senhorinhos que vinham a Ponte Vedra com um chapéu preto, sentados nas escadas… E quando dizíamos que algo era uma ‘portuguesada’ já sabíamos a que se referiam, igual que quando eles diziam que algo era uma ‘galegada’… Até que aparece Vinícius de Moraes e até que aparece a bossa nova… E isso também é Portugal! Ou até que de repente o pai de Antonio Fraguas vai a Niterói (Brasil) trabalhar nos caminhos de ferro e descobre que a sua língua de Cotobade é útil, não o isola. Os imaginários vão mudando. E é nesse tipo de relações que vão mudando o imaginário coletivo que temos que trabalhar.
“Os imaginários vão mudando, como o pai de Antonio Fraguas quando vai trabalhar nos caminhos de ferro a Niterói e descobre que a sua língua de Cotobade é útil”
Agora, meter o binormativismo agora no sistema eu penso que seria, na minha opinião, pedagógica, estratégica e politicamente falando, um disparate. Bem-intencionado, mas um disparate.
Tens muita preocupação por como a gente identifica e interioriza a língua. Há também gente nova que está a dar o passo para o galego, mas não só, porque passam do castelhano para o galego reintegrado. Interiorizam a língua, e interiorizam-na inscrita na Lusofonia. Esta gente… como contas com esta gente nova na estratégia que defendes?
Que utilizem o português e que não abandonem o galego. Tenho um filho aí: o meu filho escreve como escreves tu.
Essa é a tua ideia?
A minha ideia é que não devemos viver acomplexados pelo castelhano nem viver acomplexados pelo português. Volto ao de antes, o galego é o galego, e o galego tem que construir, mesmo para, chegado o momento, poder modificá-lo, tem que construir a sua própria identidade, a partir da autoestima e a partir dum produto moderno, competitivo na criatividade. E depois de chegarmos aí, podemos abordar diferentes passos, porque isto não é eterno. As cousas não são assim para sempre. Se calhar, dentro de dez anos ou dentro de cinco anos estamos falando de que já podemos enfrentar mais cousas. Deixemos que o debate continue. E que possamos ter o debate como o estamos a ter eu e tu agora.
“As cousas não são assim para sempre. Se calhar dentro de dez anos ou cinco estamos a falar de que já podemos enfrentar mais cousas. Deixemos que o debate continue”
Porque é certo que eu também tenho as minhas inseguranças, e as minhas contradições, e eu também sou neofalante de certa forma. Falava-o com Otero Pedrayo quando o entrevistei para Uma dúzia de galegos. Perguntava-lhe por isto e ele disse ‘a modo, rapazes, porque aqui todos somos conversos’. Quer dizer, todos os que conformam o que chamaríamos o sector consciente na política cultural e inteletual galega… nalgum momento demos o passo. Nalgum momento tivemos que tomar posição porque a derivada levava-nos sempre a Madrid, sempre ao castelhano. E naquele momento, quando dás um passo, é o resultado também duma reflexão, duns meios e duns afetos, e também duma riqueza que vais partilhando e vais descobrindo… Neste caso é a música, a literatura, as artes, o cinema, mas também é a vida social, o desenho das marcas comerciais… Tudo isso vai criando uma atmosfera que permite dar o seguinte passo. Eu insisto: a língua galega não é uma língua local, é uma língua que está em condições de dialogar com outras línguas irmãs que nos abrem ao mundo, mas é o galego e tem de ter os falantes atrás. E os experimentos… cuidado com os experimentos.