domingo, 17 de mayo de 2020
E se a nossa língua estivesse a morrer?
viernes, 9 de septiembre de 2022
A proximidade entre o português e o galego é um segredo bem guardado em Portugal − e mais ainda no Brasil.
No dia em que o Brasil faz 200 anos, falamos sobre o português de cá e de lá (e ainda damos um saltinho à origem da língua).
Marco Neves, no "Certas Palavras" .
Mais uma vez, não podemos deixar de colar um texto sobre a língua galega, visto tão acertadamente, como sempre, por M.N.
9. De regresso à origem: o galego
Regressemos, agora, à origem. Também sentimos a estranheza da proximidade quando encontramos textos galegos. Reparemos nas primeiras palavras do livro Ela, maldita alma, de Manuel Rivas:
Aquela primavera chegara axiña e en demasía. Á hora do café, pola fiestra que daba á horta, Chemín mirou a festa de páxaros na vella maceira florida.
Um português que não conheça o galego fica baralhado. Neste caso, a expectativa da maioria dos falantes vai no sentido de encontrar diferenças. Assim, a proximidade que existe é surpreendente: a língua dos galegos não parece tão distante da nossa como pensávamos. A proximidade é suficiente para querermos corrigir o acento em «á»… A proximidade entre o português e o galego é um segredo bem guardado em Portugal − e mais ainda no Brasil.
O galego partilha com o português várias características: os artigos definidos, a queda do «n» e do «l» em certas posições, os diminutivos − e muito, muito mais. Quando a nossa fronteira norte foi estabelecida, há tantos e tantos séculos, o material linguístico de um lado e do outro era muito semelhante. Depois da criação de Portugal, a linguagem das ruas transformou-se, a sul, na língua oficial do reino, com gramáticas, norma, uso na Corte − isto, claro, ao fim de alguns séculos, que o processo não foi nada rápido.
A norte do Minho, as pessoas continuaram a falar o que sempre falaram − mas, depois do florescimento literário medieval de que todos ouvimos falar na escola na forma das Cantigas de Amigo, a língua ficou nas ruas, com pouco uso escrito e formal.
Só no século xix, o galego renasce como língua literária − mas note-se que nunca morreu. Esteve apenas a ser usado no lugar onde as línguas nascem, se desenvolvem e morrem: nas bocas dos falantes. Uma larguíssima maioria de galegos sempre usou o galego como a sua língua do dia-a-dia. Se aterrássemos numa rua galega do século xix, seria difícil ouvirmos conversas entre galegos em castelhano.
Quanto ao uso oficial do galego, só o encontramos no final do século xx − precisamente quando o uso real, na rua, começou a diminuir. Hoje, o galego é uma das línguas oficiais da Galiza − mas já é usado por uma minoria da população.
Existem duas normas: o galego reintegracionista − defendido por quem usa a proximidade linguística para reintegrar o galego no mundo da língua portuguesa − e o galego oficial, ensinado nas escolas, usado nos meios de comunicação social e em muitos livros e que encontramos nas placas da estrada quando vamos à Galiza. Este galego oficial usa «ñ» e «ll» (e muitos «x»), enquanto o reintegracionista usa «nh» e «lh» (e o «j»/«g» onde a versão oficial usa o «x»). Mesmo dentro de cada campo, há variações, mas não vale a pena falar delas agora.
10. Uma questão de proximidade
Para tentar mostrar de forma um pouco mais visual a relação entre o português e o galego, uso novamente as pirâmides.
O desenho é uma simplificação, claro. Mas o que quero dizer com ele é que há uma maior proximidade entre as formas populares e informais do que entre as normas. Se a proximidade das normas brasileira e portuguesa nos podem levar a pensar que a língua das ruas está mais próxima do que realmente está, no caso do galego, acontece o contrário: se olharmos para as normas, ficamos convencidos de que estão mais distantes do que realmente estão. É fácil encontrar palavras nos dicionários galegos que são palavras populares em Portugal.
Sublinho a proximidade que existe entre o português de Portugal e o português do Brasil − mas também entre o português e o galego. Uma proximidade que convive bem com as nossas antigas e desejadas separações políticas. Afinal, somos um país antiquíssimo − para quê ter medo do que nos aproxima de outros povos?
martes, 3 de diciembre de 2019
De vez em quando um livro. Assi nasceu uma lingua
Qual é a origem da língua portuguesa?
O leitor Paulo Vieira enviou-me esta mensagem:
Ouvi-o na Prova Oral afirmar que a nossa língua vem do galego e estava agora a ler uma notícia do Público sobre os Lusíadas, a que fez referência no artigo da língua bastarda, e nessa notícia é dito que a obra tem uma forte influência do castelhano, língua que aparentemente era muito usada na corte.
Fiquei interessado e gostava de esclarecer quais as origens da nossa língua. Recomenda algum livro sobre o tema?
O português vem do galego?
Influências castelhanas no português literário
E o galego?
Em resumo…
- Introdução à História do Português, de Ivo Castro (um livro académico e actualizado, com fartos exemplos concretos).
- História do Português, de Esperança Cardeira (um livro brevíssimo, editado numa colecção da Caminho sobre temas de linguística).
- «O passado galego do português»
- «Entre Latim e Português: o Galego»
- «Um bom ‘mergulho’ no idioma: Verbos exclusivos de galego e português»
Mais recente, 3 dezembro, na sua presentação do livro na Galiza, aquí uma entrevista na Voz de Galicia.
Presentação do livro em Braga.
sábado, 23 de diciembre de 2023
A questão galega e o público português. F. Venâncio.
Por Fernando Venâncio.
Entre 1997 e 2001, ainda nos alvores da Internet em Portugal, teve lugar um debate sobre a Galiza no fórum «Lusofonia» do portal português Terràvista.
Esse debate (cujos materiais são, actualmente, de acesso restritíssimo) ganha hoje o maior interesse. Isto porque, nele, alguns dos actuais problemas da língua na Galiza foram examinados, até ao pormenor, por um grupo de não-especialistas, galegos e portugueses.
Entre esses problemas, podem citar-se a integração da Galiza nos países lusófonos, a ortografia do galego e a sua relação com o português, as relações políticas Galiza-Portugal, as relações de ambos com a Espanha.
Sublinhe-se o carácter «naïf», não-alinhado, e sobretudo não-organizativo, dessa discussão – uma discussão informada e de um empenhamento exemplar. Uma autêntica lição para hoje.
Fonte:
https://observalinguaportuguesa.org/a-questao-galega-e-o-publico-portugues/?fbclid=IwAR3OO_ja6n34n3dUXBWNYnEAKOlbcYtJb6iGdAwOvJDXivKQqSWeAWxO7oY
A questão galega e o público português
Uma experiência na Internet (1998-2001)
in Elias Torres (org.), Actas do VIII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas (Santiago, 2005), vol. I, 2008, págs. 557-570
Fernando Venâncio Universidade de Amsterdão
Entre 1997 e 2001, ainda nos alvores da Internet em Portugal, teve lugar um debate sobre a Galiza no fórum «Lusofonia» do portal português Terràvista. Esse debate (cujos materiais são, actualmente, de acesso restritíssimo) ganha hoje o maior interesse. Isto porque, nele, alguns dos actuais problemas da língua na Galiza foram examinados, até ao pormenor, por um grupo de não-especialistas, galegos e portugueses. Entre esses problemas, podem citar-se a integração da Galiza nos países lusófonos, a ortografia do galego e a sua relação com o português, as relações políticas Galiza-Portugal, as relações de ambos com a Espanha. Sublinhe-se o carácter «naïf», não-alinhado, e sobretudo não organizativo, dessa discussão – uma discussão informada e de um empenhamento exemplar. Uma autêntica lição para hoje. Houve, no decorrer dos últimos cem anos, entre portugueses e galegos, contactos que podemos considerar 2 como de ‘diálogo’, e até de ‘debate cultural’. Não muitos, mas alguns memoráveis. Um deles foi o interesse pela Galiza por parte de Teixeira de Pascoaes, e os contactos que, nas primeiras décadas do século 20, ele manteve com intelectuais galegos, com correspondência por vezes assídua e visitas galegas a Gatão.i Assinale-se não haver Pascoaes, que teve saúde, vida e posses para isso, visitado nunca a Galiza. Pensa-se que, delicadíssimo, receava enfrentar-se com as desinteligências entre os seus amigos. Um segundo momento – de todos, porventura, o mais enriquecedor – foi o longo contacto de Manuel Rodrigues Lapa com a cultura galega. Desde 1932, na Seara Nova e variados outros periódicos, e até ao fim da vida, alimentou com os seus numerosos amigos galegos um diálogo devotado, insistente, e por vezes difícil. A correspondência publicada, já volumosa, informa-nos dos bastidores dessa longa conversa pública.ii Entretanto, nos anos 50 e 60, tinham-se dado vários encontros, ou ‘assembleias’, luso-galegos, promovidos pela Real Academia Galega e pelo município de Braga.iii No decorrer dos anos 80, deram-se, sem a presença física de Rodrigues Lapa, mas com ele presente na mente de todos, dois debates, duas mesas-redondas em contexto académico, científico. Em ambos os casos, a discussão centrava-se na questão da língua – nada de admirar, desde o incisivo artigo de Lapa, em 1973, na Colóquio Letras. A primeira dessas mesas-redondas tem lugar em Novembro de 1980, em Trier (Trèves, Tréveris), no decurso do colóquio ‘Sobre a posibilidade de establecemento dunha lingua culta galega’, organizado por Dieter Kremer e Ramón Lorenzo. Participam na discussão Filgueira Valverde, Alonso Montero, Celso Cunha, Paiva Boléo e o próprio Lorenzo, não propriamente os maiores 3 admiradores de Lapa. O debate partiu de um breve texto enviado ao colóquio pelo mestre português. Resultou numa conversa incómoda, de fórmulas calculadas, e mesmo (foi o caso de Boléo) alguma brusquidão.iv A segunda mesa-redonda realiza-se, em Lisboa, em Junho de 1983, durante o ‘Congresso sobre a Situação Actual da Língua Portuguesa no Mundo’.v Nela participa, pela Galiza, Ramón Piñeiro, que se vê contestado por Maria do Carmo Henríquez. Há um enfrentamento, não um diálogo. Esse tinha-se dado horas antes, a pretexto duma comunicação de Pilar Vázquez Cuesta, com intervenções de Pilar García Negro, Francisco Salinas Portugal e da mesma Carmo Henríquez. Discutia-se entre galegos, diante dum público sobretudo português. Ignoro até que ponto os congressos da Agal, realizados entre 1984 e 1996, foram lugar de debate (sublinho, ‘debate’) entre galegos e portugueses sobre a língua na Galiza. Mais provável suponho essa discussão nalgum dos longos serões de um congresso de Lusitanistas, algures no planeta. vi Actualmente, a troca de pontos de vista dá-se em fóruns da internet. Devemos citar os de Vieiros.com, onde Portugal é, com frequência, tema de conversa. Importante, também, é a discussão no fórum ‘Assembleia da Língua’, onde, entre galegos e portugueses, se deram já assinaláveis convergências, e igualmente assinaláveis enfrentamentos, ásperos e instrutivos.vii Mais do que todos, importa citar os fóruns do PGL, Portal Galego da Língua, onde, neste exacto momento, se travam debates do maior interesse e onde se verificam até discussões entre portugueses. Eles duplicam – oito anos depois, e quase ponto por ponto – o debate de que vos venho falar aqui.
A Internet, uma criança
Foi uma polémica viva, animadíssima, que se estendeu por anos, e todavia hoje esquecida. Os próprios que a mantiveram recordam-na como algo distante – embora, quando a referem, ainda o rosto se lhes ilumine. Decorreu num fórum internético entre 1997 e 2001 e nela participaram, com entusiasmo, mesmo com euforia, bastantes portugueses, um ou outro africano, alguns brasileiros e uma mão-cheia de galegos. Importará lembrar que, em 1997, a internet pública era uma criança. E, como uma criança, enternecedora, trabalhosa e cara. Tudo isso era compensado por reconfortantes sensações de descoberta e de pioneirismo. Por felicidade, surge então um ministro português da cultura que cria um instrumento simples, dúctil e gratuito: um «portal» aberto a qualquer indivíduo de língua portuguesa, com páginas pessoais de 2Mb (um luxo!) e variados fóruns de discussão. [Hoje sabe-se que o próprio ministro, um filósofo, não ia muito à bola com a internet. Alguém o terá, portanto, convencido. Agradeça-se aos dois]. O portal abriu em Março de 1997, chamava-se «Terràvista» e tinha um visual e uma arquitectura ainda hoje modelares. Começam então a povoar-se os fóruns. Os de «Gentes e Lugares», da «Noite» e da «Lusofonia» depressa vão tornar-se espaços de eleição. Com a vantagem, para a «Lusofonia», de congregar interlocutores assíduos de vários continentes. Só a Oceânia não contribuirá. Em compensação, a causa de Timor-Leste unirá um dia as mentes. Toda esta entusiasmante conversa, hoje guardada em 11Mb de texto, agarrou e revolveu temas como a regionalização portuguesa, a política interna angolana, o precário relacionamento de brasileiros e portugueses, o 5 Nobel de Saramago, Olivença, a Expo 98, os touros de morte de Barrancos, as relações de Portugal com a Espanha, o mirandês, e Timor, como já se disse. E, como se disse já também, a questão da língua na Galiza. É neste tema que vou centrar-me. Mas, antes de avançar, antes que se julgue que eu fui um dos heróis, o seguinte. Devo a um puro acaso ter sido, em Janeiro deste ano de 2005, posto na pista desse fórum. E foi um puro e feliz acaso que, pouco depois, me depositou nas mãos esse imenso material. Quero ser digno desta escolha do destino, que evidentemente é cego. Faço planos para um livro que conterá o essencial dessa conversa luso-galega que, durante quatro anos, cruzou dia e noite o Ocidente peninsular.viii E mais uma precisão. Como o destino, além de gentil, é avaro, os nove meses de conversa de 1997 ficaram inacessíveis, e podem considerar-se definitivamente perdidos. Não se sabe, assim, quando entram os temas galegos na conversa. Só sabemos que, a 1 de Janeiro de 1998, estão em cena um galego, «Paulo» de seu nome, ou nick, um português de Viana do Castelo, «José Cândido», e o lisboeta «Francisco». Mas o convívio dá aspecto de já vir de longe.
‘Recozinhando’ a lusofonia
Francisco acaba de regressar da Galiza. Tem boas e más impressões. Na Corunha falaram-lhe, diz ele, «em galego sem preconceitos», mas em Vigo quase não o ouviu. Paulo tenta elucidá-lo, e diz que, se as pessoas lhe falam em castelhano, pode bem ser «por cortesia». Um dia, alguém no fórum virá com pormenores e com a explicação. Francisco não é um qualquer. Tem bom conhecimento histórico, domina vários crioulos 6 portugueses, de que recolhe textos na sua página, possui elasticidade e virulência verbais invejáveis, tem um àvontade ideológico visionário, que os interlocutores assimilam à Direita, e a espantosa idade de 18 anos. Faz sua a causa de Olivença, como em breve fará a de Casamança (um enclave lusófono no Senegal), como fará a de Timor. Em semelhante perfil, o interesse pela Galiza cabe à larga. Francisco, que hoje faz um mestrado de sociologia na Grã-Bretanha, atravessará toda esta história. José Cândido, em Viana do Castelo, diz doeremlhe «os senhores de Lisboa» e a sua insensibilidade ao esforço «integrador» galego. Increpa à capital portuguesa a «asfixia» das vogais átonas que, com um «centralismo barrigudo», impôs ao resto do território. E chama à Galiza e ao Minho «dois namorados a quem os pais proibiram o noivado», o que não será o último arroubo lírico no fórum. Paulo, o galego, dá-lhe então o endereço electrónico de certa revista lusófona «feita na Corunha», Çopyright, e José Cândido logo se propõe adquiri-la na Galiza. Paulo terá de lembrar-lhe que a revista tem só formato ‘web’. Não sabemos (eu não sei) quem foram este Paulo e este José Cândido. Ambos, aliás, se somem, sem rasto, logo nesses inícios de 98. Antes de silenciar-se, Paulo lança, em repto, o tema das relações de Portugal com o Estado vizinho. Opina ele que a «aversão» à Espanha «provém de um complexo de inferioridade e algum temor», para ele incompreensíveis. Francisco sente-se atingido e afirma «nada» haver em Espanha «que Portugal possa invejar». De resto, lembra, vem aí a Expo 98 e, adverte, «alguns espanhóis terão alguns dissabores». A Galiza entra claramente nos planos de futuro de Francisco para o país. Para esse «português do mar oceano», convictamente anti-europeísta, a Galiza «vai ajudar a encontrar a simplicidade do Portugal medievo 7 juntamente com um Portugal agrário», assim colaborando no «recozinhar da sopa» da lusofonia. Sim, «talvez seja pela boca ou mão de um galego» que Portugal acorde «para um novo mar». A causa galega tinha aqui o seu profeta, e tanto bastou para se supor Francisco em más companhias. Ele levará meses a afastar suspeitas de conexões à extrema-direita portuguesa, fascista e salazarista, que já então operava na rede e manifestava alguma gulodice pela Galiza. Francisco é, na realidade, todo o contrário do racismo. Ama a sua «Lisboa crioula», resplandecente de africanos e asiáticos, e acha, mesmo, que tudo o que Portugal tem de bom o trouxe de fora. Ali está a Galiza, bem próxima, de onde pode trazer muito. O belicoso tom anti-espanhol de Francisco não recebe nenhum eco nos compatriotas. Os espanhóis «são um povo cordial, educado e com quem se pode trabalhar», diz «Xpto». São «um povo maravilhoso, um povo agradável», diz «Xixa». «A verdade é que nos damos naturalmente bem», diz «Ji». «Acho um óptimo país com quem temos excelentes relações», diz «Re21». «Se os espanhóis se estão a aproveitar, é porque culturalmente são um povo cheio de garra, e é isso que nós estamos a aprender a ter…», diz «Guida». Quando, em Maio, a Expo 98 abrir as portas, Francisco, voz no deserto, há-de apontar ainda o desprezo e ignorância espanhóis pela «especificidade» portuguesa. Perante a espectacularidade da missão espanhola, lançará o slogan: «Vá à Expo, fique em Espanha!»
«200 milhons de almas»
É por então – Julho de 98 – que entra em cena um novo galego, que assina «Outeiro» e propõe ao fórum «um aberto debate sobre os problemas da Galiza, berço da 8 lusofonia». Apresenta a Agal, de que dá endereços postais, e lança um aviso sobre a «dupla moral» do presidente autonómico, Manuel Fraga, que, em casa, persegue o «reintegracionismo» e, lá fora, se felicita da «nossa língua comum». A entrada de Outeiro não passa despercebida. Há sonoras boas-vindas, e Francisco dá mesmo vivas à «galegofonia de 200 milhons de almas». Exacto, «milhons». Volta e meia, o ainda quase adolescente lisboeta redigirá ‘posts’ inteiros em reintegrado, ou o que ele supõe sê-lo, com várias e recreativas contaminações de autonómico. Uma interveniente de um «país lusófono» pede a Outeiro esclarecimentos sobre a perseguição ao galego. Sempre em ‘agal’, ele informa: «Na Galiza, o Estado espanhol está a pôr em prática um processo de substituiçom lingüística. Este consiste em fazer com que os monolíngües em galego-português virem bilíngües em galego e espanhol, como passo prévio para tornar-se depois em monolíngües em espanhol». E lembra o dano feito ao galego por portugueses exprimindo-se, na Galiza, em castelhano. Sucesso certo, teve-o ele com um juvenil brasileiro, Ronald («tenho 17 anos»), de Minas Gerais, que promete não voltar a dizer «Galícia». Outeiro deixará ainda recomendação da leitura, para «informaçom alheia ao conflito», da Gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra e de obras de Lapa. É essa a última intervenção desse galego, que passou fazendo o bem. Iria deixar saudades. A causa do galego ficará agora entregue a Francisco, que lembra a certo «Marquinhos», da Galiza, a necessidade de que o falem «bem», para que o idioma se mantenha. E esse mesmo lisboeta de 18 anos expõe a certa «Ana Mórfica» qual é «a grande aposta do imperialismo cultural castelhano»: «Obrigar o galego a distanciar-se do 9 português, obrigá-lo a utilizar uma caligrafia [sic] diferente, fazendo com que não possa ser aceite na lusofonia e destruindo-o progressivamente, abafando-o na pobreza».
Grandes animadores
É nesse Verão de ’98 que aparecem no fórum dois indivíduos – o português «Omar Salgado» e o galego «Perico» – que irão tornar-se o que até aí Francisco tivera de ser sozinho: os grandes animadores do debate. «Omar» surge perguntando o que é feito do «nosso amigo Outeiro, paladino da lusofonia em terras da Galiza» e sugere visita a uma página galega, a do MDL, Movimento de Defesa da Língua. Mas bem depressa Omar Salgado não tem mãos a medir. Certo «Intruso» insinua andarem ele e Francisco a pactuar com neo-nazis incitadores à anexação «de parcelas de território pertencentes a países independentes» (leia-se, à Espanha). Francisco e Omar, ambos se batem com denodo, ambos desafiam o atacante, expõem os ideais do MDL e igualmente do MSL, Movimento de Solidariedade Lusófona, de que Francisco se diz aderente e que, segundo ele, tem ligações à Agal. Ora, não só não convencem, como o atacante vai receber apoio. «Invadir a Galiza?», escreve o participante «Re21» a Omar. «Ó caro senhor, quer aqui o Kosovo ou a Jugoslávia?». E aconselha-o a visitar a própria Galiza, onde verá que os nacionalistas são «uma minoria das minorias» e que não há «quem queira ser português». Omar Salgado, quadro numa federação desportiva em Lisboa, preparando um mestrado em Estudos do Património, acabava exactamente de regressar da Galiza. Do que ali ouviu e viu, ficara-lhe claro o intento de «repor novo fôlego à língua tradicional e legítima, tendência essa 10 que é combatida pelo poder central». E quanto a sugestões balcânicas: trata-se, não de transferências de soberania, mas do «reconhecimento à legitimidade para o povo galego, que nos é afim, de poder expressar-se na sua língua própria, que é a nossa». Seria preciso muito mais para convencer Re21. «Galego é galego», escreve ele, «e português é português». Há-de repeti-lo, no decurso dos meses, em várias e criativas modalidades – mas com decrescente convicção. A lenta, e por fim espectacular, viragem mental deste português da Marinha Grande, especialista em comunicação internética, é possivelmente o que de mais belo há nesta história. Do outro aparecido, o galego «Perico», tem-se a clara impressão de que, havendo acompanhado a conversa, teve de intervir. É que Re21 persistia em confundir reivindicação linguística galega com fantasmas de anexação e devaneios de extrema-direita, chegando a associar simpatias lusistas com reaccionarismo autonómico. Com visível gosto, «Perico» ensina a Re21 o a-b-c das questões. Fala-lhe sobre a real difusão do galego, sobre a problemática das normativas, sobre a busca da integração do galego na sua área «natural», sobre o sistema autonómico espanhol, o estatuto das línguas cooficiais e o nacionalismo galego. Dá exemplos eloquentes, como o de ter a universidade de Vigo recusado documentos ‘redigidos num idioma desconhecido’. Ou o subsídio que a Junta deu à Mesa pola Normalización da Lingua: cinco mil pesetas, 30 €. De passagem, informa-o de que, na Galiza, ninguém no seu completo juízo pensa em anexar-se a Portugal. Mas mesmo o sentido da pedagogia deste técnico de informática viguês (a quem até os amigos conhecem por «perico», teimosamente minúsculo), pode ser 11 insuficiente quando se acredita que «estes galegos de direita» buscam «a integração em Portugal». [Estas reacções portuguesas à questão galega devem ser olhadas com atenção. Voltarei a este assunto. De momento, baste anotar que, para um português desprevenido, «reintegração» soa a «integração», e que «integração» é facilmente associável a «anexação». De igual modo, «nacionalismo» é, para o português médio, sinónimo de «independentismo», e até de «violência». Atenção, portanto. O que é óbvio para um galego pode não sê-lo, de modo algum, para um português]. Além de bem informado, Perico é curioso e um bom observador. Espanta-o a obsessão (o «desmedido amor») dos portugueses pelos centros comerciais, ou o «orgulho» que dizem ter em serem portugueses. Não tarda, e esse orgulho irá tornar-se aflitivo, quando, em Outubro, Saramago ganhar o Nobel («O Nobel que todos recebemos», «Desculpem, mas somos mesmo bons»). Não tarda, também, e há-de descobrir-se que a Espanha se está apropriando do «nosso» Nobel. Com o aval do premiado, para mais. Mas também Perico tem de acudir a alguns fogos. Re21 tem os galegos que desejam integrar a Lusofonia na conta de «indivíduos com graves problemas psicológicos», pior se pretenderem também adesão à Comunidade de Países de Língua Portuguesa. «Desiluda-se, caro Omar», escreve ele, «tudo não passa de um factor político com um determinado objectivo muito concreto, se pertencessem à CPLP. Era um meio caminho para mais um conflito político e quiçá mais um conflito armado tipo Kosovo. Era obrigar os governos da CPLP a defenderem diplomaticamente os seus [galegos] ideais 12 independentistas. Era, no máximo do impensável, obrigar a uma suposta intervenção militar». Isto obriga Perico a chamá-lo à ordem: «Você, si eu não entendi mal, defínese como de esquerdas e, no tocante ao tema galego, coincide exactamente coas posturas que aqui defendem as direitas». Omar e Francisco apoiam-no. Mas, nitidamente, nenhum vê em Re21 um caso perdido. Ademais, ele diz conhecer e amar a Galiza, e os galegos, e sobretudo as galegas. Agora essa «afinidade» de Portugal com a Galiza, isso é coisa «absurda». No fórum, a questão da adesão da Galiza à CPLP será debatida longa e recorrentemente. Suspeita-se que Fraga bem a desejaria, caso o pudesse fazer, como escreve Francisco, «de cabeça erguida e com uma boa oferta». Isto é, não pedindo, mas a convite. Bastava, aventa-se, que a CPLP criasse, em vista da Galiza, um estatuto de ‘nações em Estado’. Assim, nem Fraga nem Portugal desafiariam o Estado espanhol, e estaríamos todos no melhor dos mundos. Surge, mesmo, uma sugestão: pedir-se a opinião de técnicos independentes, e eles que decidam pela identificação, ou não, do galego com o português. Se o resultado for ‘sim’, também Madrid cantará pianinho.ix
«A tua bandeira cosida à minha»
Entra 1999, e Francisco vai de novo à Galiza. A 8 de Janeiro, ainda en Braga, escreve, folião: «Leixada deixo ao meu amigo Omar uma forte aperta!!!». Em Vigo é recebido afectuosamente por Perico. Dias depois, já regressado a Lisboa, escreve: «Só falei em português e toda a gente me entendeu». Todavia, para seu espanto, nas lojas falavam-lhe sempre em castelhano. Perico explica como as coisas se passam. Um primeiro caso. A pessoa entra num bar e dirige-se ao 13 empregado em galego. O empregado responde-lhe em espanhol. Minutos depois, ouve o empregado falar galego com um colega. Outro caso, ou o mesmo. O empregado pergunta-lhe se é professor. Explicação? É que são os professores quem mais fala galego «‘sem ter porquê’». Mais outro automatismo. Os adultos falam galego entre si, mas a uma criança dirigem-se em espanhol. Outro ainda. Na aldeia falas galego. Mas, transpostos os limites da cidade, mudas também de língua. «Isto, meu caro amigo», escreve Perico, «chama-se auto-ódio e é produto da colonização». Mas, é verdade, «cada vez menos pessoas reagem mal ao serem abordadas em português». Pena, só, que jogadores brasileiros e portugueses, entrevistados em galego, respondam em castelhano. «Um gesto de desprezo pelo país que lhes dá trabalho». E quanto à sua experiência em Portugal, pois bem: falando ele galego, nas ruas, nas lojas, respondem-lhe em espanhol. Ou em inglês. Na melhor hipótese, ele passa por um espanhol que se esforça por falar português. Entretanto, escutando, reflectindo, Re21 vai, pé ante pé, aproximando-se. Começa por elogiar a página do Terràvista que Francisco fez sobre a Galiza. Depois, formula este voto: numa Galiza autónoma, «El Rey deveria hablar galego». Perico responde: «Que o rei fale galego acho bem, mas preferia que não se denominasse rei dos galegos». Sim, dirá dias mais tarde, o problema do galego é de ordem ‘nacional’. «É como se o presidente português antigamente fosse a Angola e dissesse umas palavras em umbundo, ‘porque todos somos portugueses’». É duma exactidão que arrepia. Ao começo da noite de 25 de Abril, Omar Salgado tem uma notícia. Avenida da Liberdade abaixo, desfilou um grupo de galegos com faixas e escritos, que não pôde ler. «Mas vi», escreve para Vigo, «a tua bandeira cosida à 14 minha e agitadas ao vento, prolongando-se uma na outra». Perico sabe que não é a primeira vez, mesmo em Portugal, e informa: «No Primeiro de Maio de 74, nos Aliados, no Porto, havia muitas bandeiras galegas apesar da situação aquém Minho. Todos os 25 de Julho, dia da pátria Galega, e desde muitos anos antes da morte de Franco, há muitas bandeiras portuguesas em Compostela». A aproximação de Re21 vai dar um passo decisivo, e isso a pretexto de Méndez Ferrín. Anunciara o escritor na TV portuguesa a publicação entre nós dum livro em galego, «para dar a conhecer aos portugueses a língua dum país ocupado pelos imperialistas castelhanos». Re21 comenta que, a esse, não se lhe chamará «integracionista [sic] da Galiza em Portugal». Perico informa-o então ser Ferrín, nesse momento, o escritor galego vivo mais conhecido a sul do Minho. E acrescenta que ‘integracionistas da Galiza em Portugal’, não os conhece. Mas Re21 rejubila. Há finalmente um galego que ele compreende: Méndez Ferrín. Um que define com nitidez o ‘seu’ país, a ‘sua’ língua. Perico bem insiste em que, no essencial, ele próprio coincide com Ferrín. Com efeito, ambos visam «o reencontro do mundo galego com o português». Mais: ambos lamentam estar Portugal, «com a sua atitude e a sua cobardia ao respeito de Espanha, a empurrar a Galiza justamente na direcção que Espanha quer». Dias depois, instado por certa «Paula» a pronunciar-se sobre se «os galegos gostariam de pertencer a Portugal», Perico escreve com uma eloquência muito sua: «O achegamento a Portugal é óbvio, pois é o entorno natural do idioma e da cultura galegos. Mas isso não quer dizer que a Galiza queira ‘pertencer’ a Portugal, entre outras coisas porque de ‘pertencer’ estamos fartos». 15
Reintegracionista «com dúvidas»
Em Setembro de 1999, no auge da questão de TimorLeste, Francisco decide ir alertar a Galiza para a repressão indonésia na ilha. Organiza, para isso, uma concentração em Santiago e dirige uma petição ao governo central e aos parlamentos central e autonómicos. Facto é que, no dia seguinte, o parlamento da Galiza apoia uma intervenção internacional. Isso alegra mas não desmobiliza Francisco, que de novo acende velas por Timor no centro do Obradoiro. Quem tudo isto conta é Perico. Ele vinha, aliás, mantendo os amigos portugueses ao corrente do que pudesse interessar-lhes. Assim, informa-os de que o eurodeputado Camilo Nogueira se exprime em galego como língua de trabalho em Estrasburgo, língua que soa português para os intérpretes. Informa-os de que Carlos Casares, o presidente do Conselho da Cultura Galega, acabava de reabrir a questão da ortografia, qualificando de ‘extravagante’ a autonómica. Mas Perico também se queixa de ser o único galego na lista, não lhe agradando ser visto como porta-voz da Galiza. Isso inspira outro galego a intervir. E é assim que entra na conversa «Camilo Magdalena», também de Vigo, um «reintegracionista com dúvidas». A sua primeira preocupação é averiguar até que ponto em Portugal se sabe que a Galiza fala uma «variante» do português. Omar inclina-se para uma generalizada ignorância. «Ji», uma lisboeta que acaba de visitar a Galiza, opina que ali ouviu um idioma diferente do seu. Camilo, licenciado em ciências empresariais, que começou por escrever em português padrão, passa a grafar em ‘normativo’, para trazer melhor informados, diz ele, «os que non saibades de qué vai o conto». Os portugueses 16 não parecem incomodados, e Re21 até rejubila. Em vésperas natalícias, vemo-lo exprimir-se num boleio algo mágico: «Força, Perico e Camilo! Um dia a Galiza será um País Independente e Livre. Continuem a lutar pela vossa própria identidade enquanto cultura e de soberania de vontade mais que virtual. É uma vontade real de um povo, o galego. Um Feliz Natal para vocês dois e para todos os galegos». Quem se preocupa é Francisco, que aconselha Camilo a «experimentar» a norma Agal (e fornece um endereço, hoje de feição pré-histórica). Para convencer o galego da viabilidade da norma Agal, ele próprio, Francisco, tenta utilizá-la. Fá-lo, como já se disse, com grande latidão de critérios. É o mesmo Francisco que, já entrado o ano 2000, debita a seguinte convicção sobre a Junta da Galiza: «Se bem observarmos o [seu] discurso, a ligação mitológica a Portugal não é propriamente abafada, antes exaltada, porque essa é uma óptima arma justificante de existência perante o imperialismo cultural castelhão sobre a aberração portuga, fazendo crer que a Galiza tem a eterna missão de encorajar o seu irmão gémeo a voltar à verdadeira família de Deus Espanha». A frase contém pelo menos um anacoluto, além de vários plebeísmos, e inspirase sãmente na conspiração universal. Mas já é perturbador alguém havê-la produzido. O viguês Camilo volta então a abandonar a «diabólica» norma para aconselhar a leitura de artigos, como um de Valentim Rodrigues Fajim e um de António Tabucchi. Diferentemente de Perico, Camilo não está bem convencido da identidade das línguas, mas vai-se aproximando disso. Advogará primeiro a ortografia portuguesa, afirmará ser o português «o galego culto» (puro Rodrigues Lapa…) e contará ter ouvido em aldeias do Douro ‘um galego muito bom’. Já sobre a intimidade 17 das culturas não lhe restam dúvidas. «Sem nós», afirma Camilo, «não se explica a lusofonia». Com intenção semelhante, havia Perico dito meses antes: «O português somos nós». Re21, cada vez mais entusiasmado, dirige agora uma declaração «Aos Galegos»: «Eu, Luso, sou pela plena constituição de um Estado Democrático Galego. Primeiro, encontrem as vossas raízes, transmitam-nas aos vossos filhos, netos e por aí fora, e daqui a uns anos, quando nós estejamos já feitos em pó, o vosso país há-de nascer. Ou, quem sabe, talvez se assista ao nascimento do País Galiza ainda durante a nossa vida. O Império Soviético também caiu em dias, talvez o Reino de Castela lhe aconteça o mesmo».
«O puto lá do cimo da rua»
A partir de agora, Re21 vai insistir na confluência de pontos de vista com Perico. «As minhas ideias são no fundo as mesmas do que tu no que respeita à Galiza. Finalmente!». Na realidade, o empresário da Marinha Grande, ao apoiar uma independência galega, coincide, não com Perico, mas com Ferrín. Concedido: as questões são complexas, e mesmo paradoxais. É o que Omar Salgado vai exprimir neste ‘tour d’horizon’ dos apoios à causa galega no país a sul. «Espantosamente, em Portugal os detentores dos meios de produção, segundo a ideologia própria da sua classe, acham neo-imperialisticamente que o galego é lusófono, enquanto que a massa trabalhadora, em defesa das mais amplas liberdades democráticas, acha o contrário. Já na Galiza o proletariado, num rasgo libertário contra o jugo castelhano, acha que o galego é lusófono, e os donos do 18 capital explorador acham hegemonicamente o inverso, em defesa da ‘hispanidad’». Também Francisco tenta perceber o enredado da posição portuguesa. Constata uma «‘natural’, instintiva antipatia quando falamos da Galiza» e atribui-a a um «‘natural’ repúdio por tudo o que nos identifique com Espanha», mesmo que só parte dela. E explica: «Identificar Portugal com a Galiza é provar que Portugal é algo que tem a ver com Espanha». É isso que, segundo Francisco, nos assusta. Nada disto pode tranquilizar muito os galegos. E é essa sensação de ‘beco sem saída’ nos apoios portugueses que vai inspirar a Camilo esta página dramática:
Com a chegada da democracia [em Espanha], conseguiu-se que se reconhecera o galego como língua e não um simples dialecto do castelhano. O que ainda não logramos é que se reconheça que o galego e o português são a mesma língua. Para o nacionalismo espanhol é muito difícil reconhecer que uma parte de Espanha fala uma língua estrangeira. Seria o mesmo que questionar a unidade da pátria. Para o nacionalismo galego seria invalidar um dos seus principais argumentos: a existência de uma língua nacional própria. Isso quanto aos galegos. E que pensam os portugueses? Responder a essa pergunta é uma das razões pelas que estou aqui a participar neste foro. E estou a ver que teis os mesmos prejuízos que nós. Se percebi bem – repito, se percebi bem – muita gente sente antipatia pela Galiza porque identificá-la com Portugal é provar que Portugal é algo que tem a ver com Espanha. Se isto é assim, estamos fodidos. 19
Quando o coração está num aperto, a língua torna-se eloquente… E será um Camilo já resignado, e regressado à norma autonómica, que afirmará dias depois:
O que está claro é que a sociedade galega non está preparada neste momento para asumir a idea de que o que falamos sexa simplemente portugués. Non só os españolistas, senón case todo o mundo. Quizá sexa contraproducente plantexar o asunto de frente e subitamente e sexa mellor irmos máis a modo. Por outra parte, tampouco os portugueses sodes conscientes de que hai uns españois alén do Miño que falen portugués.
Um episódio menor vai, ainda assim, reanimar Camilo. Certo «Álvaro» introduzira um tema anódino, mas que Omar Salgado tomaria a peito: o da coexistência, nos portugueses, de sangue «germânico» e sangue «semita». Segundo o interveniente, reina em Portugal algum desprezo pela componente germânica. Depressa se passa à desconversa, mas Omar, divertido, vai estendendo o tema. Aparece então este ‘post’ anónimo e tipo telegrama: «vai pró caralho ó alvaro hitler porco filho da puta nazi». Logo no dia seguinte, aparece um comentário de Camilo: «Duas línguas que dizem da mesma maneira algo como ‘vai pró caralho filho da puta’ têm necessariamente de ser a mesma». A 31 de Maio de 2001, serão encerrados estes fóruns do Terràvista. Sabia-se, estava anunciado. Mas não podia acreditar-se. A última palavra caberá aqui a Re21. Ele foi, de todos, o mais puro, o que nunca teve nada a perder, e que sempre pôde ser instintivo, primário na sua rudeza e no seu lirismo. É um inaudito apelo e um comovedor convite. 20
Estamos numa rua, somos uns putos a brincar, há um que quer brincar connosco, mas nós não deixamos apesar de viver na mesma rua. É tempo de nós, portugueses, deixarmos brincar com a gente o puto lá do cimo da rua. É porque afinal assim toda a rua brinca de uma ponta à outra! E fica uma rua muito mais forte e bonita!
Caros senhores e amigos:
Esta longa e viva conversa entre galegos e portugueses – não universitários, não especialistas, não alinhados – foi conduzida pelo interesse recíproco, pelo empenho no mútuo entendimento. Talvez mais importante ainda: nesse pequeno laboratório duma discussão internética, a questão galega foi, por primeira vez, colocada a um público português. Verificou-se então uma nítida clivagem nas reacções. E se algum erro os galegos pudessem cometer, era subestimarem a complexidade, e os fundos enraizamentos, das atitudes portuguesas. Neste momento, a ‘questão galega’ goza, entre nós, de um interesse residual. Na campanha para as últimas eleições autonómicas galegas, o primeiro-ministro português, José Sócrates, e o futuro presidente da Junta, Emílio Pérez Touriño, produziram um texto conjunto, onde se comprometem a estimular a cooperação transfronteiriça, inter-regional. É, na sua singeleza, o primeiro documento duma ‘política galega’ em toda a História portuguesa. Mas, com isso, ainda está longe de colocar-se em Portugal a ‘questão galega’. Quando um dia tal acontecer, é seguro que encontrará uma imensa reserva 21 de generosidade, mas igualmente um considerável potencial de resistência, e até de rejeição. Isso não precisa de ser fatal. O caso de «Re21» mostra como a rejeição pode ser transformada em generosidade. Mas mostra, também, quanto a generosidade pode, ela própria, coabitar com malentendidos, ao ponto de alimentar-se deles. Serão, sempre, indispensáveis a pedagogia dum «Perico», a informação dum «Francisco», a sinceridade dum «Camilo», a firmeza dum «Omar Salgado». Tenha-se particularmente em conta isto, que é curioso. Uma simples aproximação cultural galega pode, em Portugal, gerar desconfianças. Em contrapartida, uma solução radical, como é a independência da Galiza, consegue levantar autênticos entusiasmos. Compreendese. Se em alguma coisa Portugal se revê, é num país independente, com cultura e língua próprias. Um país arrumadinho, como ele mesmo. O que baralha um português é essa espectacular descoincidência de ‘Estado’, ‘Nação’ e ‘Língua’. Ele descobre, a Norte, um país que é, e não é, ‘Espanha’. Que se reclama de fundas raízes numa História comum com ele, mas provavelmente mal contada. E que fala uma língua que não só difere da do Estado, como poderá ser idêntica à dele, português. É muita areia para a sua camioneta. Mas não se desista. Com pedagogia, com informação, com muita paciência, até os portugueses serão convencidos. 22
Notas !
Veja-se a este respeito: Xosé Ramón Freixeiro Mato, «Unha visión das relacións culturais galego-portuguesas nos anos vinte a través da correspondencia entre Teixeira de Pascoaes e Noriega Varela», Boletín Galego de Literatura, nº 11, 1994, pp. 71-98; «Noriega Varela, poeta lusófilo», Estudos dedicados a Ricardo Carvalho Calero, vol. 2, Parlamento de Galicia / Universidade de Santiago de Compostela, 2000, pp. 275-299; Eloísa Álvarez e Isaac Alonso Estraviz, Os intelectuais galegos e Teixeira de Pascoaes. Epistolario, Sada-Corunha, Ediciós do Castro, 1999; Isaac Alonso Estraviz, «Relações de Teixeira de Pascoaes com escritores e intelectuais», Portal Galego da Língua, VII-2003. !! Maria Alegria Marques e.a. (org.), Correspondência de Rodrigues Lapa. Selecção (1929-1985), Coimbra, Minerva, 1997; Manuel Rodrigues Lapa, Cartas a Francisco Fernández del Riego sobre a cultura galega, Vigo, Galaxia, 2001. iii Cf. José David Santos Araújo, Portugal e Galiza: encantos e encontros, Santiago, Laiovento, 2004, pp. 160-163. !” «Mesa redonda: ‘Sobre a posibilidade de establecemento dunha lingua culta galega’», Dieter Kremer e Ramón Lorenzo (eds.), Actas do Coloquio de Tréveris ‘Tradición, actualidade e futuro do galego’, 1980, Xunta de Galicia, Santiago, 1982, pp. 236-248. v Actas do Congresso sobre a situação actual da Língua Portuguesa no Mundo (1983), Lisboa, Icalp, vol. I, 1985, pp. 129-135 e 439-448. vi Para os propósitos desta charla, interessam contactos, em tempo real, sobre a cultura e a língua na Galiza, e de que tenha ficado documentação. Como já se viu, tenho nessa conta a correspondência. Mas excluo tipos de encontro noutro suporte, ainda que do maior interesse, como os números especiais de revistas que, de um lado e outro do Minho, se foram fazendo. Uma lista com treze títulos figura abaixo num Apêndice. Agradecem-se achegas. 23 vii Só uma sugestão de passagem: poderia ter interesse rastrear as ligações que se vão estabelecendo entre bloguistas galegos e portugueses. Entre o norte e o sul do Minho observa-se, nesse terreno, uma conexão crescente. viii Terá o título de Uma conversa a Ocidente. Portugueses e galegos na internet (1998-2001). ix O idioma não é, nem de longe, o único tema de conversa entre galegos e portugueses. Nem poderá ser, quando Re21 afirma só portugueses e cabo-verdianos saberem o que é a ‘saudade’. Perico tem de informá-lo de que, antes de ser portuguesa, já era galega. Outro assunto que animou as conversas: a decisão da TAP de diminuir o serviço internacional no Porto. Era uma medida que, acentuando a macrocefalia de Lisboa, privava a própria Galiza de nítidas comodidades. Para mais, com uma ligação por via-férrea calamitosa. «Ir de comboio de Vigo ao Porto», escreve o técnico informático, «é a coisa mais parecida a uma viagem Moscovo-Shangai». E como se chama a ponte que une Arbo a Melgaço? «Ponte Manuel Fraga Iribarne». Enfim, um mal menor. 24
Apêndice Números especiais / Dossiers
Seara Nova, número dedicado à Galiza, coordenação de Rodrigues Lapa, nº 425, 7-II-1935 Seara Nova, ‘Homenagem a Castelao’, coordenação de Rodrigues Lapa, nº 1204-1207, 3 a 24-II-1951 Quatro-Ventos. Revista Luísada de Literatura e Arte, 1954-1957, 1959-1960, 1999-… Céltica. Cadernos de Estudos Galaico-Portugueses, Porto, [1961] Vértice, número dedicado à Galiza, nº 367/368, 1974 Nós. Revista galaico-portuguesa de culturas das Irmandades da Fala de Galiza e Portugal, Braga-Pontevedra, 1986-… Colóquio Letras, ‘Nós. A literatura galega’, coordenação de Pilar Vázquez Cuesta, nº 137/138, 1995; nº 139, 1996 [recenseado em: Yara Frateschi Vieira, «A literatura galega e nós», Jornal de Letras, 28-VIII-1996] 25 A Nosa Terra, suplemento ‘Rodrigues Lapa (1897-1997)’, nº 806, 27- XI-1997 Anto, ‘Galiza’, Amarante, nº 2, 1997 Nova Renascença, ‘Homenagem à Galiza’, coordenação de Luís G. Soto, XXX, nº 72-73, 1999 Tempos Novos, ‘Portugal, tan lonxe e tan perto’, nº 51, 2001 Mealibra, Antologia de poetas galegos, coordenação de Carlos Quiroga, nº 13, 2003/2004 Periférica, ‘Portugalego?’, nº 13, 2005
viernes, 1 de mayo de 2020
Falando da lingua. O bionormativismo, Carvalho Calero e mais cousas con Vitor Freixanes.
Víctor Freixanes: “Carvalho Calero é a crónica do galeguismo do século XX”entrevista no PGL
Carvalho Calero acabou de ser escolhido como figura homenageada para as Letras Galegas de 2020. Esta era uma reivindacação contínua de diversos movimentos sociais que, anos depois, é satisfeita. Como avalias esta resolução por parte da Academia?“A Academia é ciente, desde há tempo, de que a figura de Carvalho Calero não podia ser adiada nem marginalizada”
“Da mão de Carvalho descobri as diferentes fases da nossa história e da nossa literatura”
“Havia uma deformação da visão da literatura galega como muito poética… E Carvalho procurava uma recuperação dos primeiros textos em prosa”
“Até que se produz o distanciamento, Carvalho Calero é Galáxia”
“A primeira vez que Carvalho Calero é proposto na Academia para ser homenageado no Dia das Letras Galegas é no 2005, com Franco Grande e Fernández del Riego”
“Fernández del Riego tirava importância à escolha ortográfica de Carvalho, dizia que só fora uma última época, mas não são parvadas. Na altura, se publicássemos a obra de Carvalho em reintegrado… abriríamos um problema na escola”
“Todo o mundo com uma posição documentada e consistente terá espaço e voz no simpósio académico de Carvalho Calero”
“Em Portugal não são capazes de reconhecer que o português é filho daquele galego medieval, têm um discurso obsoleto”
Não por mudar o código linguístico mudamos o país.
“Um problema político que temos atualmente é que não podemos construir um discurso de ilussão onde o país se reconheça. Logicamente, eu sim sou partidário de abrir espaços de relação com essa família à que pertencemos “
“A única forma de falar em pé de igualdade com o resto do mundo é ter um produto competitivo, moderno, exigente… e ter o país atrás de nós. Não podemos construir uma língua de laboratório e que depois o falante de Bertamirães não se sinta representado”
“O galego é o galego, o galego não é o português nem o brasileiro nem o angolano”
“A língua galega e portuguesa são línguas irmãs, e com pouco esforço podes incorporar-te a uns espaços linguísticos e culturais enormes, sem deixar de ser galego”
“Os imaginários vão mudando, como o pai de Antonio Fraguas quando vai trabalhar nos caminhos de ferro a Niterói e descobre que a sua língua de Cotobade é útil”
“As cousas não são assim para sempre. Se calhar dentro de dez anos ou cinco estamos a falar de que já podemos enfrentar mais cousas. Deixemos que o debate continue”