colado do blog Un jeito manso.
Simone Biles, nos braços de um anjo
......Imagine-se isto numa outra dimensão, num contexto muito mais profissional e mais mediático, mas com uma jovem que, em menina, a par dos seus irmãos, esteve a cargo de uma mãe com problemas de álcool e drogas, várias vezes presa, sem possibilidade de lhes proporcionar estabilidade ou, até, a alimentação suficiente. Simone Biles viveu consecutivos dias de fome e de medo. Acabaria por ser criada pelos avós. Já adolescente viria a sofrer agressões sexuais por parte do médico que acompanhava as atletas americanas e, segundo tem referido, disso guardou um trauma para o resto da vida, ainda receando que a toquem mesmo que em actos meramente clínicos.
Simone Biles é mais baixa, muito mais elástica e forte do que a maioria das mulheres da sua idade. O que ela faz com o seu corpo desafia as leis da gravidade. Parece levada nos braços de um anjo.
Horas e horas e horas de treino, horas e horas e horas de exercício, de busca da perfeição. Com as câmaras sempre em cima, escrutinada em permanência, Simone, tal como os desportistas de alta competição, está sujeita a uma pressão esmagadora. Ela tem que ser a melhor, a superlativa, a ganhadora de medalhas, a perfeita, o exemplo, a mais resiliente, a mais inspiradora. Se, por acaso, tiver dias de desconforto, dias de hesitação, dias de dor física ou de dúvida terá que escondê-los e ultrapassá-los para que ninguém suspeite de que não é Simone Biles.
As suas articulações, os seus músculos, os seus ossos e a sua força anímica têm que estar sempre no máximo para que, nunca, nada falhe, Nos treinos, Simone corre, salta, eleva-se no ar, rodopia no chão e no ar, contorce-se, aterra e eleva-se e voa. Horas e horas, dias e dias. E, pelo meio, entrevistas, sessões fotográficas.
Na sua cabeça, os seus demónios: a recordação do medo, da angústia e da fome dos tempos em que a mãe se perdia dos filhos, a par da repulsa e da vontade de esconder a memória do toque abusivo de Larry Nassar, devassando o seu corpo inocente.
Enquanto corre para saltar e rodopiar, esses diabos rodeiam Simone. E rodeiam estes e rodeiam os outros, os diabos menores, os diabos avençados pelos mercados, pelos investidores, que alertam: se não continuas a ser a melhor, retiramos-te o tapete, cuidado...
Ao elevar-se para saltar, agora nos Jogos Olímpicos, Simone perdeu momentaneamente a consciência de si, deixou de saber onde estava e, em vez das duas voltas e meia no ar, apenas deu volta e meia. Ao aterrar, vacilou, estremeceu. Nela, super-mulher, perfeita, isto é estranho. Em qualquer outra pessoa, em mim, em si, se nos conseguíssemos elevar no ar meio metro e, ao mesmo tempo, darmos meia volta, certamente ficaríamos sem saber de que planeta seríamos e cairíamos desamparados, estatelados, partidos, no chão. Para nós, não para Simone -- que costuma saltar, voar, encarpar-se, rodopiar, tudo como se fosse um boneco de molas -- que cai sempre de pé, aprumada, elegante e segura.
essa altura, quando, no ar, o corpo tentou evadir-se da mente, percebeu que, a continuar, poderia enlouquecer ou cair desamparada, magoando seriamente o seu corpo.
Parou e, corajosamente, explicou o que se passava.
O mundo pasmou com a surpreendente retirada de Simone e com a inesperada confissão. Simone é humana, afinal.
Não sei bem que mundo é este nosso em que se pretende que os bons sejam
muito bons, bons demais, excelsamente bons e em que se desprezam aqueles
a quem os deuses deixam de levar nos braços. Mas sei que Simone Biles, a
gigante, fez mais pelo verdadeiro sentido desportivo e pela necessidade
de acarinharmos a humanidade daqueles que admiramos do que mil
discussões estéreis e mil palavras cheias de lágrimas de crocodilo.