Mais uma vez, não podemos deixar de colar um texto sobre a língua galega, visto tão acertadamente, como sempre, por M.N.
9. De regresso à origem: o galego
Regressemos, agora, à origem. Também sentimos a estranheza da
proximidade quando encontramos textos galegos. Reparemos nas primeiras
palavras do livro Ela, maldita alma, de Manuel Rivas:
Aquela primavera chegara axiña e en demasía. Á hora do café, pola
fiestra que daba á horta, Chemín mirou a festa de páxaros na vella
maceira florida.
Um português que não conheça o galego fica baralhado. Neste caso, a
expectativa da maioria dos falantes vai no sentido de encontrar
diferenças. Assim, a proximidade que existe é surpreendente: a língua
dos galegos não parece tão distante da nossa como pensávamos. A
proximidade é suficiente para querermos corrigir o acento em «á»… A
proximidade entre o português e o galego é um segredo bem guardado em
Portugal − e mais ainda no Brasil.
O galego partilha com o português várias características: os artigos
definidos, a queda do «n» e do «l» em certas posições, os diminutivos − e
muito, muito mais. Quando a nossa fronteira norte foi estabelecida, há
tantos e tantos séculos, o material linguístico de um lado e do outro
era muito semelhante. Depois da criação de Portugal, a linguagem das
ruas transformou-se, a sul, na língua oficial do reino, com gramáticas,
norma, uso na Corte − isto, claro, ao fim de alguns séculos, que o
processo não foi nada rápido.
A norte do Minho, as pessoas continuaram a falar o que sempre falaram
− mas, depois do florescimento literário medieval de que todos ouvimos
falar na escola na forma das Cantigas de Amigo, a língua ficou nas ruas,
com pouco uso escrito e formal.
Só no século xix, o galego renasce como língua literária − mas
note-se que nunca morreu. Esteve apenas a ser usado no lugar onde as
línguas nascem, se desenvolvem e morrem: nas bocas dos falantes. Uma
larguíssima maioria de galegos sempre usou o galego como a sua língua do
dia-a-dia. Se aterrássemos numa rua galega do século xix, seria difícil
ouvirmos conversas entre galegos em castelhano.
Quanto ao uso oficial do galego, só o encontramos no final do século
xx − precisamente quando o uso real, na rua, começou a diminuir. Hoje, o
galego é uma das línguas oficiais da Galiza − mas já é usado por uma
minoria da população.
Existem duas normas: o galego reintegracionista − defendido por quem usa a proximidade linguística para reintegrar o
galego no mundo da língua portuguesa − e o galego oficial, ensinado nas
escolas, usado nos meios de comunicação social e em muitos livros e que
encontramos nas placas da estrada quando vamos à Galiza. Este galego
oficial usa «ñ» e «ll» (e muitos «x»), enquanto o reintegracionista usa
«nh» e «lh» (e o «j»/«g» onde a versão oficial usa o «x»). Mesmo dentro
de cada campo, há variações, mas não vale a pena falar delas agora.
10. Uma questão de proximidade
Para tentar mostrar de forma um pouco mais visual a relação entre o português e o galego, uso novamente as pirâmides.
O desenho é uma simplificação, claro. Mas o que quero dizer com ele é
que há uma maior proximidade entre as formas populares e informais do
que entre as normas. Se a proximidade das normas brasileira e portuguesa
nos podem levar a pensar que a língua das ruas está mais próxima do que
realmente está, no caso do galego, acontece o contrário: se olharmos
para as normas, ficamos convencidos de que estão mais distantes do que
realmente estão. É fácil encontrar palavras nos dicionários galegos que
são palavras populares em Portugal.
Sublinho a proximidade que existe entre o português de
Portugal e o português do Brasil − mas também entre o português e o
galego. Uma proximidade que convive bem com as nossas antigas e
desejadas separações políticas. Afinal, somos um país antiquíssimo −
para quê ter medo do que nos aproxima de outros povos?
Sempre aprendendo de MARCO NEVES, achei interessante sabermos porque os portugueses dizem "obrigado, obrigada".
Obrigado» vem do particípio passado do verbo
latino «obligō». Este, se escavarmos um pouco, veio da raiz
indo-europeia «*leyǵ-», que significaria ligar – e, diga-se, o verbo
português «ligar» tem a mesmíssima origem indo-europeia.
Isto é interessante, não tenho dúvidas, mas mais interessante será
ver que esta viagem não explica a origem da nossa fórmula de
agradecimento. Afinal, a origem que descrevi acima é a mesmíssima origem
da palavra «obligado» do castelhano – e um espanhol nunca diz
«obligado» para agradecer seja o que for.
«Obrigado», na verdade, são duas palavras (pelo menos).
Temos a forma «obrigado», particípio passado do verbo «obrigar», que
às vezes se disfarça de adjectivo. Este «obrigado» aparece em frases
como «Fui obrigado a abrir a porta.» ou «Eu sou obrigado a virar à
esquerda naquele cruzamento.». É uma palavra com vários usos e tem
origem no latim. Corresponde, sem grandes discrepâncias, ao «obligado»
castelhano.
Mas, depois, temos o nosso amigo e conhecido «obrigado» como fórmula
de agradecimento. Muitas línguas têm uma interjeição com este
significado:
inglês: «thanks»
francês: «merci»
castelhano: «gracias»
alemão: «danke»
japonês: «arigatō»
português: «obrigado»
E podíamos continuar por aí fora… Algumas das palavras acima têm variantes, mas estas são as mais comuns.
A origem de cada uma destas fórmulas é distinta. O «thanks» inglês
terá origem na expressão «thanks to you», ou seja, «graças a si», o que
será parecido ao percurso que levou às fórmulas castelhana e alemã. Já o
«merci» francês teve outra origem, semelhante à origem da nossa
expressão «Vossa Mercê», o que nos leva a concluir que o «merci» francês
e o «você» português têm uma origem comum. Já a palavra japonesa parece
lembrar a palavra portuguesa. Haverá alguma relação? Já lá chegamos.
A interjeição portuguesa «obrigado» surgiu a partir de expressões
mais complexas, como eram as fórmulas finais nas cartas, tais como
«Muito Venerador» e «Obrigado a Vossa Mercê». Com o tempo, aquele
«obrigado», que tinha a tal origem latina muito antiga, começou a deixar
para trás – sem o perder por completo – o sentido original de obrigação
e passou a ser usado como fórmula fixa. Ou seja, a forma verbal
tornou-se a interjeição de agradecimento típica da língua portuguesa.
Digamos que a palavra decidiu saltar de categoria – e reinventar-se. No
entanto, a palavra anterior («obrigado» como forma verbal) não
desapareceu. Na verdade, dividiu-se em duas palavras…
Agora, o ponto mais interessante: esta reinvenção da palavra é muito
mais recente do que pensamos. Só no século XIX começamos a ver surgir
nos nossos textos o «obrigado» com o sentido de agradecimento que lhe
damos hoje. Imagino que, na oralidade, o uso seja um pouco mais antigo.
Mas tudo indica que Camões não dizia «obrigado!» quando alguém lhe dava
alguma coisa…
Que consequências tem isto? Para começar, deita por terra a teoria de
que a palavra tem uma ligação profunda à alma portuguesa, como já
cheguei a ouvir por aí – estas teorias que ligam esta ou aquela
característica linguística ao carácter nacional são sempre muito
suspeitas. Depois, torna a ideia de que o «arigatō» japonês teve origem
no «obrigado» português num belo anacronismo. É engraçada, mas não
parece possível. Há outras palavras de origem portuguesa no japonês, mas
os japoneses já diziam «arigatō» antes de nós dizermos «obrigado» com o
mesmo sentido.
Como agradeciam os portugueses antes desta transformação tão recente?
Há outras expressões de cortesia na língua: «agradecido»; «bem haja»;
«grato» … A certa altura, as tais fórmulas pomposas das cartas começaram
a desbastar-se e daí surgiu mais uma fórmula de cortesia: o nosso
conhecido «obrigado». Esta nova interjeição acabou por se espalhar de
tal maneira que, hoje, ultrapassa as fórmulas mais antigas – é o nosso
agradecimento típico e uma das primeiras palavras que um estrangeiro
aprende quando começa a falar português. Não era assim há 300 anos.
Como sempre, a língua continua a moldar a palavra e a reinventá-la.
Já não temos só o «obrigado», mas também o «muito obrigado» ou o
«obrigadíssimo» – e ainda o levemente irónico «obrigadinho».
Há ainda um pormenor curioso. A forma verbal «obrigado» varia em
género e número. Uma mulher dirá «estou obrigada a cumprir a regra» e um
grupo dirá «estamos obrigados a realizar a tarefa». Ora, quando a forma
verbal se transformou numa interjeição de agradecimento, seria de
esperar que ganhasse as características das interjeições. Uma delas é
esta: uma interjeição não varia em género e número. Por esta lógica, o
«obrigado», quando é interjeição, deveria ser sempre «obrigado» e nunca
«obrigada» ou «obrigados». No entanto, como vestígio da história que
contei, a interjeição continua a variar na boca de muitos falantes — mas
só em género. Assim, um homem tende a dizer «obrigado!» e uma mulher a
dizer «obrigada!». Já a variação em número quase desapareceu: se um
grupo disser «obrigados pela atenção!», a expressão será vista como
errada (ou pelo menos estranha) por uma grande parte dos falantes, que
nunca estranhariam a forma verbal «estamos agradecidos pela atenção»,
precisamente porque o nosso cérebro de falantes não trata «agradecidos»
como interjeição, mas sim como forma verbal. «Obrigado», no fundo,
mantém algumas características da antiga forma verbal de onde surgiu —
mas não todas. A língua tem razões que a razão desconhece.
Dou por terminada esta pequena viagem à origem da palavra «obrigado».
Mas não me vou embora sem dizer: obrigado por ter lido esta crónica!
Peço ao leitor que imagine uma verdadeira catástrofe linguística em
Portugal: o português é ainda a língua mais falada no país, mas há outro
idioma a invadir as conversas. As gerações mais velhas falam,
maioritariamente, português, mas os mais novos cada vez menos. Nas
cidades, o outro idioma está espalhado por todo o lado e poucos
conversam em português. Em muitas vilas, ouvimos português na boca dos
adultos, mas as crianças já brincam na outra língua. Todos aprendem
português na escola, mas usam-no cada vez menos. Pondo números à
catástrofe: cerca de 70% dos falantes com mais de 70 anos falam
português; mas entre as crianças até dez anos, apenas 20% usam a nossa
língua. O que diríamos? Diríamos que a língua estava a caminhar para o
desaparecimento. Quem se importasse com ela ficaria seriamente
preocupado — não que a vida noutra língua não seja possível, claro está.
Mas a nossa língua, a língua dos nossos avós, da nossa literatura
estaria a desaparecer. Seria, de forma contida, algo triste. Seria uma
perda cultural irreparável. Uma catástrofe cultural.
Ora, é isso mesmo que está a acontecer na Galiza: os números que
acima referi são reais, mas referem-se ao uso do galego no próprio
território onde é a língua própria — e oficial, em conjunto com o
castelhano. Todos os galegos aprendem galego na escola. Mas, em casa, é
muito habitual termos avós que conversam entre si em galego e netos que
conversam entre si em castelhano. Todos sabem as duas línguas, mas o uso
é muito diferente de geração para geração. Quem se preocupa com a
língua galega, na Galiza, está inquieto. Mais do que inquieto!
O galego tem outro problema. Durante séculos, não foi oficial: só nos
anos 80 do século XX se tornou língua oficial, apesar de sempre ter
sido a língua da larguíssima maioria da população até então. Ora, na
época em que passou a ser a língua da administração galega, havia duas
correntes: alguns especialistas defendiam que o galego era uma língua
separada de todas as outras e que deveria usar uma ortografia e uma
norma que, nas suas escolhas, a aproximavam de certas opções do
castelhano. Por exemplo, o uso do «ñ» e do «ll». Uma outra corrente
defendia que o galego devia aproximar-se mais do português — afinal
tanto o galego como o português descendem duma mesma língua medieval.
Esta última corrente, chamada reintegracionismo, defende, no
fundo, que o galego e o português são variantes da mesma língua. Um dos
grandes defensores do reintegracionismo, nessa época, era o filólogo e
escritor Ricardo Carvalho Calero. Carvalho: era mesmo assim que ele
escrevia o seu nome nos últimos anos, com uma ortografia muito próxima
da portuguesa. Neste vídeo, vemo-lo a defender o galego com um sotaque
muito diferente do nosso, mas com palavras e frases que mostram bem como
o galego está próximo do português (atente bem nas palavras, não nos
sons):
Nos anos 80, acabou por vingar a perspectiva que defendia o galego
como uma língua separada do português — embora mesmo nesta corrente o
português sempre tenha sido visto, em teoria, como boa fonte de
vocabulário. O reintegracionismo, no entanto, não morreu, mantendo-se
como corrente minoritária. É possível encontrar livros publicados tanto
na ortografia oficial (uma larga maioria) como na ortografia
reintegracionista. A relação entre os dois campos foi tensa durante
muito tempo. Uns e outros defendem o galego e o seu uso, mas têm ideias
diferentes sobre como proteger a língua.
Ora, apesar da diminuição do uso, o galego enquanto língua de cultura
e literatura é reconhecido todos os anos no importantíssimo Dia das
Letras Galegas — que é sempre no dia 17 de Maio. Todos os anos é
escolhido um escritor ou figura galega que sirva de tema para as
comemorações oficiais. Durante o ano, a Televisão da Galiza, o Governo
Galego e as várias instituições da região organizam exposições,
documentários, programas e tudo o que for possível para divulgar a
figura escolhida. Previsivelmente, as figuras escolhidas não costumam
estar enquadradas no campo reintegracionista.
Até este ano. A Real Academia Galega, instituição que regula a norma
oficial da língua — norma que não é reintegracionista — escolheu
precisamente Ricardo Carvalho Calero como figura de 2020. Este parece
ser um passo, entre outros, de aproximação dos dois campos. Todos
reconhecem que o galego precisa de protecção especial. Ora, saber que,
em galego, é possível comunicar com os muitos milhões de falantes de
português ajuda a dar prestígio social à língua.
Em Portugal, pouco ou nada ouvimos falar destas questões galegas. E,
no entanto, o galego — em qualquer uma das suas variantes — está muito,
muito próximo do português (em especial do português popular do Norte).
Ou bem que é a mesma língua ou a língua mais próxima da nossa.
A nossa língua ou a nossa língua-irmã está a desaparecer aqui bem
perto, a norte da fronteira. O galego de hoje em dia descende da língua
que falavam os primeiros portugueses — e os galegos de então, claro. Faz
parte da nossa história. Encontramos por lá palavras tão portuguesas e
tão esquecidas como «asinha» (que os galegos escrevem, muitas vezes,
«axiña»). Os galegos usam os nossos artigos, muitos dos nossos verbos,
têm uma sintaxe arrepiantemente próxima da nossa. Até têm, vejam bem, a
«saudade», assim mesmo, escrita desta maneira (também têm a «morriña»,
porque nisto das palavras há sempre lugar para mais uma).
Por isso, digo: o Dia das Letras Galegas — principalmente num ano em
que homenageia um escritor que decidiu usar «lh» para escrever o seu
nome e que defendia a aproximação ao português — é também um pouco
nosso.
O que podemos fazer? Nada de especial: afinal, o galego só pode ser
salvo pelos galegos. Mas podemos ouvi-los com mais atenção, usar a nossa
língua quando conversamos com galegos, começar a conhecer um pouco
melhor os nossos vizinhos do Norte, vizinhos que — quando não estão a
falar castelhano — falam qualquer coisa que se não é a nossa língua é o
diabo por ela.
Latim clássico não era certamente. Não só a nossa língua provém do
latim vulgar, das ruas, e não do latim clássico – como seria de
estranhar que o latim, ao longo de mais de 1000 anos, não mudasse. Mudou
– e mudou muito. Entre a chegada dos Romanos ao Ocidente da Península e
o momento em que Afonso Henriques se torna rei, passaram séculos e
séculos – mais séculos, aliás, do que já passaram entre o tempo de
Afonso Henriques e o nosso próprio tempo.
Quando Afonso Henriques nasce, nas ruas já ouvíamos algo com
características que hoje consideraríamos muito portuguesas e muito menos
latinas. Como exemplo, já se notaria a queda do «n» e o «l» em muitas
palavras que, noutras línguas (como o castelhano) ainda se mantêm – por
exemplo, a «luna» latina passou a «lua» no português e manteve-se «luna»
no castelhano.
Apesar de ser já, em traços largos, a nossa língua, ninguém usava a
designação «português» para a língua. O termo comum seria «linguagem», a
linguagem do dia-a-dia, desprezada e sem forma escrita. Era, no
entanto, mesmo sem nome, uma língua completa. As línguas vão mudando ao
longo dos séculos, transformando-se e dividindo-se, mas – na oralidade –
nunca estão numa fase imperfeita ou decadente. Estão sempre em contínua
mudança. (A escrita é outra história…)
Agora, a surpresa: a tal linguagem que saía da boca de Afonso
Henriques desenvolveu-se, a partir do latim vulgar, numa parte do que é
hoje o Norte de Portugal – mas também na Galiza. Naquele momento, não
havia uma fronteira linguística entre o novo reino e o reino a norte. A
língua de Afonso Henriques era a língua latina própria do território da
antiga Galécia romana. Para sermos precisos, a língua desenvolveu-se
numa parte do território da Galécia, que incluía parte daquilo que é
hoje o Norte de Portugal e a Galiza, como explicado no livro Assim Nasceu Uma Língua, de Fernando Venâncio, excelente leitura para quem quiser saber mais sobre a origem da nossa língua.
Por altura da fundação do reino, a tal linguagem da rua, a língua da
Galécia, começou a ser escrita – e há, aliás, muito boa literatura
naquilo que hoje chamamos «galego-português» (um nome que ninguém usou
até muitos séculos depois). A língua própria da antiga Galécia era uma
língua que chegou a ser usada pelos reis castelhanos para escrever
poesia – e foi usada, como aprendemos na escola, por D. Dinis na sua
poesia e, cada vez mais, em documentos oficiais. Era o nosso português
antes de se chamar português.
A língua da Galécia tornou-se a língua do novo reino de Portugal. Com
alguma naturalidade, séculos depois, começou a aparecer o nome de
«português» como designação da língua do reino – sem que a língua
deixasse necessariamente de ser a mesma que se falava ainda a norte do
Minho, na Galiza.
E no Sul? Na altura em que Afonso Henriques se tornou rei de
Portugal, o Sul estava sob domínio muçulmano. A língua da população era,
no entanto, o moçárabe, ou seja, a particular evolução do latim no Sul
da península. Com a expansão do novo reino de Portugal para sul, a
língua do Norte começou a invadir os novos territórios, sofrendo algumas
influências do moçárabe e, através deste, do árabe. A língua da Galiza e
do Norte tornava-se, também, a língua do Sul de Portugal.
Como a capital ficou estabelecida em Lisboa, a forma particular da
língua nessa cidade ganhou um prestígio particular, sem que tal
significasse que fosse, de alguma maneira, a melhor forma de falar a
língua. No Norte, o português continuou a ser falado como sempre foi.
Mesmo na Galiza, onde a língua foi, durante séculos, raramente usada na
escrita, a população continuou a falar, pelos séculos fora, algo muito
próximo do que saía da boca dos portugueses do Norte.
Nas últimas décadas, com a expansão do uso do castelhano na Galiza e
com a uniformização da língua portuguesa centrada nos usos do Sul (uma
uniformização que não é completa, mas tem aproximado a forma de falar
dos portugueses de todo o país), os galegos e os portugueses do Norte
começaram a sentir uma divergência mais marcada naquilo que se fala na
rua a norte e a sul do Minho.
Mesmo assim, ainda hoje há uma surpreendente proximidade entre o que
se fala dum lado e doutro da fronteira entre Portugal e a Galiza – e
note-se que estamos a falar de uma das mais antigas fronteiras do mundo.
Muitos galegos ainda falam galego e nós, claro está, falamos português.
Todos nós, portugueses e galegos, falamos qualquer coisa que descende
da língua que se ouvia em Guimarães – mas também em Tui – quando Afonso
Henriques se tornou o primeiro rei de Portugal.
Essa língua forjada na antiga Galécia está hoje noutras paragens do mundo, já o sabemos. Mas essa história fica para outro dia…
No final deste artigo, deixo algumas sugestões de leitura.
Mas antes, porque esta compulsão para escrever parece não ter
cura, vou tentar explicar aquilo que sei (ou penso saber). Mas tenho de
avisar: não sou linguista histórico. Sou um tradutor e professor que
estuda linguística por motivos práticos e junta a isso uma paixão pela
disciplina.
Pois bem: a verdade é que gosto muito da história da língua — e julgo
ser este um tema que nos interessa a todos. Com base no que fui
aprendendo ao longo dos anos, mas também com base na leitura dos livros e
artigos que refiro no final, aqui fica o meu resumo (os erros, claro,
serão meus e não dos livros e artigos — ressalve-se!).
O português vem do galego?
Enfim: todos nós que dizemos falar português e todos os que dizem
falar galego falamos qualquer coisa que teve origem nos falares da
Galécia, ali no noroeste da Península. Durante séculos, o latim trazido
pelos soldados e colonos romanos e adquirido por toda a população foi
sofrendo transformações — não as podemos ver em tempo real, porque
ninguém as registava ou escrevia, mas, muitos séculos depois, quando
finalmente a língua começou a ser escrita, havia nesse território uma
língua já formada, com verbos próprios, com formas próprias, com
características que a identificam e a distinguem das outras línguas em
redor.
O que chamavam as pessoas a essa língua que já era, em muitos
aspectos, a nossa? Não lhe chamavam nem galego nem português:
chamavam-lhe linguagem, com toda a probabilidade. Era a língua
do povo. Nós, agora, olhando para trás, podemos chamar-lhe «português», o
que não deixa de ser anacrónico, ou «galego», o que não deixa de
assustar algumas almas mais sensíveis, ou «galego-português», para
agradar a gregos e a troianos (como se esses fossem para aqui chamados).
Na escrita, durante todos esses séculos do primeiro milénio, o latim
continuou rei e senhor.
Quando Portugal se tornou independente, começámos a usar a língua que
existia no território, que era ainda apenas o Norte. Não a escolhemos
de imediato, pois nos primeiros tempos o latim ainda foi a língua
oficial. Mas, devagar, a língua que era de facto falada começou a
infiltrar-se nos textos escritos, às vezes de forma imperceptível,
outras vezes de forma mais clara.
O país expandiu-se para sul e, com ele, veio a língua, claro. O
português nasceu nesse canto noroeste e expandiu-se até ao Algarve (e,
mais tarde, até além-mar). Por alturas de D. Dinis era já a língua
oficial.
Depois, no final do século XIV, temos revoluções, a batalha de
Aljubarrota… — a nobreza nortenha perde influência, a burguesia lisboeta
alça-se à posição de classe dominante (e tudo o mais que faz parte da
História). Lisboa é agora a capital e a nação esquece-se que a língua
veio do norte, não foi criada em todo o território nacional. O que se
falava em Lisboa seria esse galego-português que viera para sul com a
Reconquista. Houve, claro, algumas intrusões do moçárabe, a linguagem
latina do sul (com muitos arabismos). Mas, nas suas estruturas e
características principais, a língua que Portugal assumiu como sua é a
língua criada na Galécia: não houve um ponto em que o galego e o
português se tivessem separado claramente.
Influências castelhanas no português literário
Não houve um ponto em que o galego e o português se separassem
claramente. Mas há, isso sim, algum afastamento da língua padrão em
relação ao que se fala mais a norte. Muito desse afastamento fez-se
também por causa das influências externas. Com a corte em Lisboa, e
durante muitos séculos (na época de Camões, por exemplo), o castelhano
teve uma influência que hoje poucos imaginam. Os escritores portugueses
também escreviam, muitos deles, em castelhano. Liam em castelhano. A
igreja usava muito o castelhano. A corte também usava o castelhano. Era a
língua de prestígio. As misturas eram inevitáveis…
Ora, o português popular de todo o país não sofreu estas influências
de forma tão marcada. Assim, arrisco-me a dizer que o português popular
manteve durante mais tempo uma maior grau de semelhança com o galego do
que o português-padrão — talvez por não ter tanta influência castelhana.
Principalmente no Norte, o português e o galego mantiveram-se tão
próximos que a fronteira era difícil de traçar. Mais a sul, na Corte, na
capital, a língua “desgaleguizava-se” (ver artigos de Fernando Venâncio
citados abaixo). Para as elites lisboetas, o galego e o português do
Norte começaram a soar a português da província. E, no entanto, era de
lá que tinha vindo a língua…
Depois, o castelhano deixou de ser uma influência forte no português
(aí por volta do século XVIII); vieram então as influências francesas e,
já bem entrado o século XX, começamos a olhar para o inglês.
Sim, sempre fomos uma língua que sofreu influências fortes de outras
culturas. Podemos não gostar do facto, mas é isso mesmo: um facto. Não
fiquem horrorizados: o castelhano também teve vagas dessas, o francês
idem — então o inglês nem se fala. Não percam muitas horas de sono com
isso — e, depois, a língua vai atrás da cultura, neste ponto: se
quisermos uma língua pura, temos de fechar a cultura a influências
exteriores. As línguas mais puras são as mais isoladas, as menos
importantes.
Para terminar este resumo muito resumido, diga-se que o
português-padrão se expandiu de forma fenomenal durante o século XX, com
a escola, a televisão, a rádio, a imprensa. Aí, as formas do
sul começaram a suplantar as outras formas, que subsistem, mas com menos
força. O português começou a tornar-se mais homogéneo (e menos
nortenho/galego) — mas tudo isto já é história das últimas décadas…
E o galego?
Bem, quanto ao galego, lá em cima, num país sem corte, uma sociedade
rural, não sofreu tanta influência castelhana até muito tarde, embora
essa aparente pureza seja apenas reflexo do isolamento da
sociedade. Grande parte da população galega, aliás, só terá começado a
sentir a invasão da sua língua pelo castelhano quando a escolaridade
obrigatória apareceu no horizonte — e a televisão, jornais, etc. Ou
seja, para muitos galegos, o castelhano tornou-se influência no século
XX (nas elites terá sido antes, claro). Apesar de tardia, a influência
do espanhol é avassaladora, claro está. Aliás, chamar-lhe influência
será um eufemismo cruel. O espanhol não influenciou o galego: o espanhol começou a substituir
o galego. Afinal, o Estado é o espanhol e a escolaridade da população
foi em castelhano até muito tarde. Ou seja, nos séculos XIX e XX,
o galego levou uma coça de que ainda não se levantou, apesar de, desde
os anos 70, o governo autónomo ter, oficialmente, uma política de defesa
da língua.
Alguns galegos tentam aproximar a sua língua do português para assim
melhor se defenderem do peso do castelhano; outros apostam num galego
autónomo tanto do castelhano como do português. Mas que o galego e o
português ainda estão mais próximos do que imaginamos, isso é
indesmentível: então quando começamos a olhar para o vocabulário
popular, aquele que muitos desprezam injustamente, começamos a ver como
falamos uma língua que não deixa de ser muito galega.
Em resumo…
… o português tem origem no latim popular falado no noroeste da
Península, na Galécia Magna, língua essa a que podemos chamar galego por
ser uma língua da zona do Reino da Galiza, uma língua já com
características muito próprias séculos antes da existência de Portugal.
Ao tornar-se a língua dum estado independente a sul, chamado Portugal, a
língua passou a chamar-se português — e com esse nome foi transplantada
para os outros países que a falam. Apesar das mudanças a sul, a língua
mantém uma forte proximidade com o que se fala a norte da fronteira.
Essa língua portuguesa, como é típico duma língua dum país de cultura
aberta a outros povos, sofreu grandes influências exteriores: do
castelhano, do francês, do inglês… Até hoje. Também nos dias de hoje as
formas mais padronizadas do português começam a suplantar as formas mais
populares entre a população em geral — enquanto na Galiza, o castelhano
avança.
Isto é uma explicação simplificada, claro está. É ainda a minha forma
de o explicar: outros dariam ênfases a outras partes ou acrescentariam
pontos talvez importantes… Se alguém quiser corrigir, matizar,
completar, os comentários estão abertos!
(Proponho ainda que dê uma vista de olhos pelas histórias romanceadas
que escrevi e que tentam dar uma ideia do que foi o percurso do idioma
nesses primeiros séculos: «História Secreta da Língua Portuguesa».)
Bem, mas a pergunta era outra: que livros de especialistas podemos ler sobre o assunto?
Proponho dois livros breves, recentes, sobre a História da língua:
Introdução à História do Português, de Ivo Castro (um livro académico e actualizado, com fartos exemplos concretos).
História do Português, de Esperança Cardeira (um livro brevíssimo, editado numa colecção da Caminho sobre temas de linguística).
Proponho também três artigos de Fernando Venâncio sobre o assunto
(convém dizer que as aulas que o autor deu na FCSH, este ano,
permitiram-me aprender muito sobre as origens da língua):
Adenda em Outubro de 2019: os artigos de Fernando Venâncio que referi
acima foram uma amostra das investigações do linguista no que toca à
origem da língua. Em 2019, publicou o livro Assim Nasceu Uma Língua,
um percurso interessantíssimo pelas origens do português. Fica como
sugestão para quem quiser saber mais sobre a pergunta do título.
pois bem — o que dirá o leitor se eu lhe disser que uma das
músicas que será cantada na final da Operação Triunfo espanhola de 2018
inclui estes versos?Meus olhos choram por ver-te meu coraçom por amar-te meus pés por chegar a ti meus braços por abraçar-te. Desejava de te ver, trinta dias cada mês cada semana o seu dia e cada dia umha vez. Tes os olhinhos azuis inda agora reparei se reparara mais cedo nom amava a quem amei.
Isto não é uma tradução. São mesmo os versos que serão
cantados por Sabela, uma das concorrentes finalistas. A canção chama-se
«Tris-tras» e é do grupo Marful. O que se passa aqui? Uma espanhola vai tentar chegar à Eurovisão a cantar em português? As
palavras «coraçom», «umha», «nom» são as pistas para deslindar o
mistério. Sabela é uma concorrente galega e, numa decisão que não é nada
simples em Espanha, decidiu cantar na sua língua: o galego. A
letra acima está escrita na ortografia reintegracionista, muito próxima
da portuguesa. É verdade que o galego oficial usa uma ortografia mais
distante da portuguesa — mas as palavras e as frases são muito nossas. Reparemos,
por exemplo, nos primeiros versos de uma das músicas já cantadas por
Sabela («Benditas Feridas»; note-se — «feridas» e não «heridas»), versos
estes que estão na ortografia oficial, mais distante da portuguesa (e
mesmo assim tão próxima): Pouco a pouco Vou deixando de esperar E secando as miñas ganas de chorar A luz tornouse a miña escuridade