Latim clássico não era certamente. Não só a nossa língua provém do
latim vulgar, das ruas, e não do latim clássico – como seria de
estranhar que o latim, ao longo de mais de 1000 anos, não mudasse. Mudou
– e mudou muito. Entre a chegada dos Romanos ao Ocidente da Península e
o momento em que Afonso Henriques se torna rei, passaram séculos e
séculos – mais séculos, aliás, do que já passaram entre o tempo de
Afonso Henriques e o nosso próprio tempo.
Quando Afonso Henriques nasce, nas ruas já ouvíamos algo com
características que hoje consideraríamos muito portuguesas e muito menos
latinas. Como exemplo, já se notaria a queda do «n» e o «l» em muitas
palavras que, noutras línguas (como o castelhano) ainda se mantêm – por
exemplo, a «luna» latina passou a «lua» no português e manteve-se «luna»
no castelhano.
Apesar de ser já, em traços largos, a nossa língua, ninguém usava a
designação «português» para a língua. O termo comum seria «linguagem», a
linguagem do dia-a-dia, desprezada e sem forma escrita. Era, no
entanto, mesmo sem nome, uma língua completa. As línguas vão mudando ao
longo dos séculos, transformando-se e dividindo-se, mas – na oralidade –
nunca estão numa fase imperfeita ou decadente. Estão sempre em contínua
mudança. (A escrita é outra história…)
Agora, a surpresa: a tal linguagem que saía da boca de Afonso
Henriques desenvolveu-se, a partir do latim vulgar, numa parte do que é
hoje o Norte de Portugal – mas também na Galiza. Naquele momento, não
havia uma fronteira linguística entre o novo reino e o reino a norte. A
língua de Afonso Henriques era a língua latina própria do território da
antiga Galécia romana. Para sermos precisos, a língua desenvolveu-se
numa parte do território da Galécia, que incluía parte daquilo que é
hoje o Norte de Portugal e a Galiza, como explicado no livro Assim Nasceu Uma Língua, de Fernando Venâncio, excelente leitura para quem quiser saber mais sobre a origem da nossa língua.
Por altura da fundação do reino, a tal linguagem da rua, a língua da
Galécia, começou a ser escrita – e há, aliás, muito boa literatura
naquilo que hoje chamamos «galego-português» (um nome que ninguém usou
até muitos séculos depois). A língua própria da antiga Galécia era uma
língua que chegou a ser usada pelos reis castelhanos para escrever
poesia – e foi usada, como aprendemos na escola, por D. Dinis na sua
poesia e, cada vez mais, em documentos oficiais. Era o nosso português
antes de se chamar português.
A língua da Galécia tornou-se a língua do novo reino de Portugal. Com
alguma naturalidade, séculos depois, começou a aparecer o nome de
«português» como designação da língua do reino – sem que a língua
deixasse necessariamente de ser a mesma que se falava ainda a norte do
Minho, na Galiza.
E no Sul? Na altura em que Afonso Henriques se tornou rei de
Portugal, o Sul estava sob domínio muçulmano. A língua da população era,
no entanto, o moçárabe, ou seja, a particular evolução do latim no Sul
da península. Com a expansão do novo reino de Portugal para sul, a
língua do Norte começou a invadir os novos territórios, sofrendo algumas
influências do moçárabe e, através deste, do árabe. A língua da Galiza e
do Norte tornava-se, também, a língua do Sul de Portugal.
Como a capital ficou estabelecida em Lisboa, a forma particular da
língua nessa cidade ganhou um prestígio particular, sem que tal
significasse que fosse, de alguma maneira, a melhor forma de falar a
língua. No Norte, o português continuou a ser falado como sempre foi.
Mesmo na Galiza, onde a língua foi, durante séculos, raramente usada na
escrita, a população continuou a falar, pelos séculos fora, algo muito
próximo do que saía da boca dos portugueses do Norte.
Nas últimas décadas, com a expansão do uso do castelhano na Galiza e
com a uniformização da língua portuguesa centrada nos usos do Sul (uma
uniformização que não é completa, mas tem aproximado a forma de falar
dos portugueses de todo o país), os galegos e os portugueses do Norte
começaram a sentir uma divergência mais marcada naquilo que se fala na
rua a norte e a sul do Minho.
Mesmo assim, ainda hoje há uma surpreendente proximidade entre o que
se fala dum lado e doutro da fronteira entre Portugal e a Galiza – e
note-se que estamos a falar de uma das mais antigas fronteiras do mundo.
Muitos galegos ainda falam galego e nós, claro está, falamos português.
Todos nós, portugueses e galegos, falamos qualquer coisa que descende
da língua que se ouvia em Guimarães – mas também em Tui – quando Afonso
Henriques se tornou o primeiro rei de Portugal.
Essa língua forjada na antiga Galécia está hoje noutras paragens do mundo, já o sabemos. Mas essa história fica para outro dia…
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