Víctor Freixanes: “Carvalho Calero é a crónica do galeguismo do século XX”entrevista no PGL
Carvalho Calero acabou de ser escolhido como figura homenageada para as Letras Galegas de 2020. Esta era uma reivindacação contínua de diversos movimentos sociais que, anos depois, é satisfeita. Como avalias esta resolução por parte da Academia?
Há tempo que a Academia é ciente de que a figura de Carvalho Calero não podia ser adiada nem marginalizada. Não deixa de ser uma injustiça histórica que não se reconheça o compromisso, o trabalho e a vida que este homem dedicou à cultura, à literatura, à língua galega… Mesmo com obras como a História da Literatura ou como a sua própria significação como primeiro catedrático de Língua e Literatura Galega na USC em 1972. Foi professor de muitos de nós, a mim leccionou-me Língua e Literatura Galegas… É certo que havia uma história detrás de desencontros, digamos assim, entre uns setores da Academia e o próprio Carvalho Calero e as suas posições arredor da língua na última etapa da sua vida. Eu acho que a nova sensibilidade da Academia está em que isso é um capítulo que forma parte da história e da pluralidade democrática dum país. E, portanto, o currículo e a memória histórica de Carvalho Calero não a vamos discutir. Havia que encará-lo com clareza, com transparência, com naturalidade e, também, aproveitando, não o oculto, que esse ano se cumprem 110 anos do seu nascimento e 30 desde a sua morte. São esses números redondos que dão pé a dedicar-lhe o ano a Carvalho Calero, que ademais também coincide com a reclamação que fizemos já ao Concelho de Ferrol para que restaurem a sua casa, de quem já vimos boa disposição. É uma oportunidade, era algo que até eu tinha que assumir.
“A Academia é ciente, desde há tempo, de que a figura de Carvalho Calero não podia ser adiada nem marginalizada”
Foste aluno dele? Como era ele como professor?
Era um professor… distante. Assim o via eu. Distante… mas muito respeitoso. Tanto que era distante. Entendes? Não sei se também era tímido, porque essas cousas… nunca sabes. Nós éramos rapazes e ele era um senhor com toda a respeitabilidade detrás. Para mim, foi a primeira pessoa que me sistematiza o galego em chave língua culta, língua a estudar… Porque uma cousa é esse galego ventureiro, esse galego que todos temos de orelha de crianças… E mais no meu caso, que sou urbanita. Eu sou uma criança duma vila como Ponte Vedra, não sou um neno de aldeia como Neira Vilas e o seu Balbino. E muitos outros companheiros da minha turma como.. Dobarro, que vinha do Ferrol. Carvalho aí era uma pessoa que nos dava informação muito sistematizada. Tanto é assim que eu dediquei-lhe muito tempo a essa matéria porque ia descobrindo da sua mão as diferentes fases da nossa história e da nossa literatura. No fundo, acho que a literatura não deixa de ser outro jeito de contar a história dum país. Também nós dedicávamos muito esforço, porque era uma época em que estávamos muito sensibilizados pelo tema da identidade e da cultura da língua galega.
“Da mão de Carvalho descobri as diferentes fases da nossa história e da nossa literatura”
Não sei quando foram publicados os primeiros textos do Instituto da Língua Galega mas eu fui aluno de Carvalho no ano 1970 ou 1971, e trabalhávamos com a sua Gramática Elemental do Galego Común. Licenciei-me por volta de 1972 ou 1973 e lembro que na altura ele estava tirando a Cátedra em Madrid, e nós celebramos muito a cátedra porque era a primeira vez que havia esse reconhecimento oficial da língua galega: uma cátedra formal na universidade.
Então… Era um homem distante com os alunos e muito respeitoso com os alunos… E muito metódico também! Ele levava a matéria com uma precisão e um programa absolutamente previsível e documentado. Às vezes excessivo, porque eu lembro que nos examinávamos até das distintas edições de gramáticas ou dicionários galegos que havia ao longo da história. Também era o material que havia… Depois foi autor de várias cousas que eu editei e reeditei em Galáxia. Essa Prosa Galega 1, Prosa Galega 2, Prosa Galega 3… Que também era um jeito de recuperar, porque havia uma espécie de deformação da visão da literatura galega como muito poética. Rosalía de Castro, Curros Enríquez, Pondal… Ele ia por um caminho de recuperação dos primeiros textos, Fernández de Neira e cousas desse estilo. E a nós interessava-nos muito porque não sabíamos nada [ri]. Na altura a desinformação era total e ele era o único professor que nos orientava. Porque depois havia rapazes novos que se incorporavam nesse momento como Antón Santamarina, por exemplo, mas Santamarina era um rapaz que começava a leccionar aulas e nós fôramos os seus primeiros alunos. Ele leccionava Linguística Geral ou Gramática Histórica. Ramom Lourenço dava Crítica Literária, por exemplo.
“Havia uma deformação da visão da literatura galega como muito poética… E Carvalho procurava uma recuperação dos primeiros textos em prosa”
De facto, o outro dia fui ao Parlamento da Galiza para ver o material dele que há ali, de cara a fazermos alguma publicação de certa relevância e distinta. No Parlamento está toda a biblioteca particular de Carvalho: uma crónica muito bonita, porque a nossa biblioteca também é uma radiografia da nossa história. Em diferentes épocas da nossa vida, vemos que cousas nos interessavam e como íamos comprando livros… Eu às vezes paro diante da minha biblioteca, que é uma imensidade e uma espécie de armazém impresentável, mas posso ver fases: a etapa do marxismo-leninismo, a etapa do sindicalismo, a etapa do feminismo… São todas diferentes etapas que formam parte da nossa identidade. E com Carvalho igual, mas ele tem tudo muito organizado, muito limpo, todo o contrário à minha [ri]. Ali há muitos autógrafos dele, que eu saiba não há inéditos, e também há muita correspondência, que também há na [fundação] Penzol, porque Carvalho foi durante muitos anos o filólogo, o gramático e o linguista de Galáxia. Até que se produz o distanciamento, Carvalho Calero é Galáxia. Nas primeiras fotografias de Galáxia dos Conselhos de Administração, assembleias… Sempre aparece Carvalho. Há um livro editado por Galáxia, ademais, que eu recomendo, que é a correspondência entre Carvalho e Fernández del Riego.
“Até que se produz o distanciamento, Carvalho Calero é Galáxia”
De facto, em outras entrevistas oferecidas por antigos alunos ou discípulos de Carvalho, eles afirmam que esse distanciamento de Fernández del Riego foi uma questão que lhe causou grande dor.
Sim… Porém, vou dizer uma cousa. Não sei se foi um distanciamento. Seguramente o foi. Pronto, igual que agora. Estamos todos na mesma causa mas depois saltam faíscas. E houve faíscas históricas entre Isaac Díaz Pardo e Luís Seoane, que eram os dous criadores do Laboratório de Formas e de Sargadelos. E houve faíscas muito gordas. E isso forma parte um pouco da vida. Os amigos às vezes discutem… Porém, com Ricardo Carvalho Calero é muito curioso. A primeira vez na que há constância na Academia de que há uma proposta para que Carvalho Calero seja homenageado no Dia das Letras Galegas é em 2005, e a proposta de Jose Luís Franco Grande e Francisco Fernández del Riego. A segunda vez foi no ano seguinte, a proposta minha e de Francisco Fernández del Riego, que o propomos para debate numas reuniões prévias consultivas, antes de entrar em pleno. Antes não era como agora, que está muito mais regulamentado. Agora deve haver uma proposta documentada com méritos e ser assinada por, no mínimo, três académicos… Porém, quando eu entrei, havia propostas que eram feitas ali, ou alguma chegada de fora à qual alguém podia aderir… E depois fica constância nas actas e nos debates. Por isso o sabemos, porque não há nenhum outro documento.
“A primeira vez que Carvalho Calero é proposto na Academia para ser homenageado no Dia das Letras Galegas é no 2005, com Franco Grande e Fernández del Riego”
E essa proposta minha para dedicar as Letras a Carvalho foi por Fernández del Riego. E a de Franco Grande também. Paco del Riego pediu-nos a ambos. Ele ademais quase se enfadou comigo quando lhe disse: “Paco, olha, há que ter cuidado porque abrimos um melão”. Ele insistia muito no de Carvalho Calero. Dizia que não queria morrer sem ver Carvalho Calero como figura homenageada no Dia das Letras Galegas. E claro, eu dizia-lhe aquilo, não o oculto, porque eu na altura ademais era director de Galáxia.
Galaxia?
Vamos ver, Galaxia… Porque a Academia não tem certos problemas, mas uma editora sim. Em que ortografia publicamos a Carvalho? Claro, esse é um tema importante. Paco tirava importância e dizia que não fizéramos caso, que só fora uma última época, que foram caralhadas… E não, não, não são caralhadas. Afinal, da vida das pessoas, elas vão mudando de posição e isso não é uma caralhada. Portanto, nós temos que saber em que ortografia publicar Carvalho. E se publicamos Carvalho em ortografia reintegrada… abrimos um problema na escola. Quer dizer, abrimos um problema que igual não é grave ou igual sim. Nós temos que ser cientes do que fazemos. Não somos umas crianças nem uns irresponsáveis. E eu falava como diretor de Galáxia. Depois passou o tempo, reformei-me e agora há outro diretor. Agora, nós quando decidimos o de Carvaho, que a mim também me preocupava muito este tema, também lhe perguntei à família. E disse “olha, sem me meter na vossa vida… quero que saibais que há muitas editoras que vão fazer essa pergunta”. E Maria Vitória disse que isso era um problema das editoras, que eles não se iam meter aí, disse que as editoras podiam quer editar na norma oficial quer editar nas propostas ortográficas de Carvalho. E aí ficou.
“Fernández del Riego tirava importância à escolha ortográfica de Carvalho, dizia que só fora uma última época, mas não são parvadas. Na altura, se publicássemos a obra de Carvalho em reintegrado… abriríamos um problema na escola”
A família apoia que seja feito em reintegrado, não?
Sim, sim… Não se opõe, nem a uma, nem a outra. Nem que se faça na oficial, nem que se faça em reintegrado. E isso são decissões que deve tomar a própria editora. Se eu edito Scórpio… Scórpio está escrito originalmente numa ortografia que deve ser respeitada. Essa é a minha opinião, como editor. E estou a falar a nível particular. E se for a História da Literatura Galega… publicá-la na oficial. Depois há cousas de Carvalho que têm muito interesse e outras pelas que passou o tempo. Isso também forma parte da história.
Dizes que a primeira vez que foi proposto foi em 2005 por Franco Grande e Fernández del Riego, mas não foi até 2019 que foi para diante…
Bom, mas isso passou-lhe a muitos.
Que pensas que impediu em passados anos dedicar as Letras a Carvalho?
Bom, pois é que de fundo…
Haveria medo a ‘abrir esse melão’?
Claro, eu penso que sim, e depois também havia histórias pessoais, nas que não vou entrar porque cada um fala da feira como a viveu e como a sofreu. O próprio Carvalho também a sofreu. Ou seja, sempre que há um conflito há pelo menos dous ou três afetados. E isso estava aí. Há sensibilidades muito diferentes. O que acontece é que a Academia também vai mudando à medida em que se vai incorporando gente nova que tem, temos, outra perspetiva das cousas. E depois o tempo permite também abordar com muita mais tranquilidade cousas que foram vividas intensamente, porque tu és muito nova mas eu que vivi a guerra ortográfica há trinta anos… aquilo era um incêndio.
Agora não vivemos isso?
Não. Vivíamos cousas nos institutos… patéticas. E há gente ferida dessa guerra. Quer dizer, houve gente que levou o que era uma discusão académica e intelectual às aulas. E então havia alunos que recebiam dum professor uma proposta ortográfica, na aula do lado o professor de galego leccionava outra… Na aula do lado, outra… Depois entre eles discutiam… E os alunos e alunas, que eram crianças de 14 anos, tomavam isso como se fosse brincadeira, e os pais… penso que era um problema de novatos.
Chamou muito a atenção que na notícia das Letras Galegas para 2020 o nome de Carvalho fosse escrito na normativa oficial, não com V e LH.
E entre parênteses pusemos o nome em reintegrado.
Depois.
Não, foi no primeiro momento, mas o sistema informático da Academia não permite introduzir parênteses [ri].
Aí têm um problema.
Não, bom, agora resolvemos isso: entre colchetes… E agora está corrigido.
Que destaca da sua figura e da sua obra? Quer a nível individual quer como presidente da Academia, como vai ser abordado o ideário linguístico de Carvalho?
Bem, vamos ver… A Academia tem dous momentos, além doutro tipo de atividades como são o Portal das Palabras ou a Primavera das Letras, que está pensado para escolas de primária a iniciativa dos professores. Destes dous momentos um é a celebração do Dia das Letras, com a intervenção formal dos académicos ao redor da figura de Carvalho. Então escolheremos três académicos que abordem a figura de Carvalho Calero desde diferentes perspetivas. E depois, em segundo lugar, haverá um simpósio académico onde haverá distintas vozes sobre a sua figura e onde todas as vozes que tenham algo que dizer, podam dizê-lo. Se têm que estar três dias, serão três dias, mas todo o mundo com uma posição documentada e consistente, terá espaço para poder dizê-lo com a madurez que permite hoje uma sociedade, incluso uma sociedade galego-falante, que pode abordar estes temas com uma tranquilidade, documentação e conhecimentos que não existiam há trinta anos.
“Todo o mundo com uma posição documentada e consistente terá espaço e voz no simpósio académico de Carvalho Calero”
Então isso também vai permitir que a figura de Carvalho Calero seja abordada dessa perspetiva, mas não é a única perspetiva de Carvalho. E isso também é importante. A Academia não aborda Carvaho Calero pelo tema da proposta ortográfica, senão que homenageia a sua figura histórica. Carvalho Calero é, de forma semelhante a António Fráguas, a crónica do galeguismo do século XX. Carvalho Calero viveu desde o período pré-Guerra Civil e República, porque é um homem muito comprometido com a República, o galeguismo do momento, o Seminário de Estudos Galegos e o Partido Galeguista… participa inclusive com Lois Tobio na redação do anteprojeto do Estatuto de Autonomia que promove o Seminário… Quer dizer, há uma série de atividades objetivas de Carvalho. E depois, na guerra, ele é uma vítima da repressão, com todas as consequências. É uma situação muito grave que eu penso que o afetou emocional e psicologicamente, afetaria a qualquer pessoa.
Depois, é um homem do que chamaríamos o exílio interior. Pratica um bocado -como aconteceu ao próprio Antonio Fraguas e Fernández del Riego- a clandestinidade. Ele viveu exercendo de professor às escondidas para manter a sua família. Foi uma situação muito dura. Teve a sorte de ser acolhido por António Fernández no [instituto] Fingoi, e aí está atuando já o grupo Galaxia, os que foram os fundadores de Galaxia. E ele não pode exercer como professor e é contratado como gerente! Ali chegaram também para serem professores pessoas como Ferrín ou o próprio Bernardino Graña. E nesse momento começa a trabalhar com Fernández del Riego –porque eram amigos íntimos– na História da Literatura Galega Contemporánea. E nesse livro de correspondência entre os dous é impressionante ver como trabalham, com que constância, com que método, com que teimosia… É um retrato dos dous, como procuram os livros, como os vão pedir… Claro, porque agora tudo está na Internet e há umas bibliotecas muito boas, mas daquela não havia nada. Encontrar um original de Proezas de Galicia de Fernández Neira ou encontrar uns documentos do que podia ser o galego patriótico da guerra contra os franceses, ou os primeiros textos em língua galega dos Precursores… Aí também estava Penzol, que estava comprando muito livro e dotando o que depois seria a partir de 1963 a biblioteca da Associação Penzol, e todos estavam aí puxando e construindo…
Ou seja, sou consciente de que Carvalho era o historiador da literatura e o gramático, porque foi a quem lhe encarregaram a Gramática do Galego Comum, de Galáxia, porque antes não havia nada, era uma seleção. E com esse material, Carvalho é quem nos dá aulas a nós na faculdade.
Além do trabalho académico sobre a literatura e a gramática, há trabalhos dele vigentes ainda agora, como as suas análises e diagnósticos sobre a situação sociolinguística do país.
Bom, eu penso que há muitas cousas, na minha visão pessoal, que o tempo passou por elas. Inclusive quanto ao critério literário, hoje seria abordado doutra maneira; mesmo a sensibilidade de Carvalho sobre diversos autores como Eduardo Blanco Amor é discutível, mas opinável, porque todo o mundo tem direito a ter uma opinião e isso não desmerece a sua figura… Ora, para mim, e agora falo a título pessoal e não como presidente da Academia, porque a Academia tem umas posições que são de todos e eu devo respeitar e defender… Para mim Carvalho abre um debate que é o da posição da língua galega na família histórica do que chamaríamos o romance hispánico occidental, que é Portugal e Galiza, Brasil… Este é um universo que acho uma riqueza, certamente.
Nós estivemos agora em Rio de Janeiro e fomos recebidos pelo presidente e toda a Academia de Letras, com Nélida Piñón… E ela disse uma frase muito bonita, disse “eu sou uma nena de aldeia, e uma nena de aldeia galega, e quando falava galego ali e logo quando cheguei à literatura portuguesa descobri a língua galega da minha infância, era como viajar pelas profundidades íntimas da língua portuguesa”. É uma história bonita, porque ali também saiu um tema no que insistimos muito, porque agora a filologia portuguesa com o tema do galego não acaba de entender que o português é filho daquele galego medieval. Então há uma corrente moderna filológica portuguesa que fala do português arcaico. Quer dizer, Mendinho, Pedro da Ponte, Bernardo Bonaval, Airas Nunes… escreveram em português arcaico. Que demo é o português arcaico!? Porquê? Porque não são capazes de reconhecer que a sua identidade linguística-nacional…
“Em Portugal não são capazes de reconhecer que o português é filho daquele galego medieval, têm um discurso obsoleto”
Claro, porque esse relato atenta contra o seu discurso nacional.
Sim, mas esse discurso nacional está obsoleto! Essa ideia de que nós somos uma nação… às vezes, as nações são construções históricas que podem ser alimentadas doutras muitas cousas. A Venezuela é uma nação, Argentina é uma nação… e falam uma língua vinda doutro sítio. Podiam falar outra cousa, podiam falar mapuche, sim, mas não falam mapuche. E os portugueses falam e desenvolveram aquela língua original. E nós, na nossa intervenção, insistimos muito em situar historicamente o galego nesse discurso. Os brasileiro entendem muito bem isto, mas entre os portugueses há de tudo… E o que não se conhece, não se ama. Então nós, para enfrentar estes temas, devemos criar espaços de relação, conhecimento e comunicação. Eu trouxe à Galiza pola primeira vez, quando dirigia o grupo Anaya, o Cardoso, Pepetela, Antunes… que nem sabiam que existia este país. Como é possível que a gente ainda pense que a Galiza é uma espécie de território perdido de quatro aldeias ao norte de Trás-os-Montes… Como é possível? Nós somos um país moderno, um país que faz cinema, que faz literatura e que faz música e que tem que estar situado na Europa do século XXI. Nós não somos um recanto folclórico nem uma reserva. Esse discurso é importante defende-lo com firmeza, e a partir de que se criem relações… depois a própria vida vai criando dinâmicas entre as pessoas, os grupos e os interesses que estão em jogo sempre na expressão duma coletividade.
Mas… que oferece Galiza para toda a Lusofonia?
Oferece na medida em que nós sejamos capazes de criar. A ti interessa-che um país ou uma cultura pela sua criatividade, pola capacidade que tem para fazer cousas que interessem. Uma boa cinematografia, uma boa literatura, uma boa ciência, umas boas artes plásticas e cénicas, uma boa música… Não por mudar o código linguístico mudamos o país. Essa é a minha opinião, porque para essas… também mudamos todos para o espanhol, e eu não estou por essas! O que temos que fazer é trabalhar em nós, e aprofundar em nós, e fazer com exigência um produto crítico –e com autocrítica– que seja competitivo nos espaços internacionais, e depois criar –e aqui estamos a falar de política– os circuitos de distribuição, de difusão, de informação, de indústria… para que esse produto seja conhecido no mundo.
Não por mudar o código linguístico mudamos o país.
Quando fui a Portugal com Manolo Lombao para falar com as televisões, para tentar convencer a RTP do Porto de poder estabelecer colaborações entre as televisões da Galiza e Portugal… não conseguimos. Eles no único que pensavam era em Madrid, Madrid e Madrid. O que queriam era falar com Madrid. Era uma conversa distendida com autoridades da RTP. E num momento dissemos “vamos ver, não podemos incorporar os companheiros de Brasil?”. Nesse momento ouvimos dizer: “O Brasil roubou-nos a língua”. Textual. E eu já disse: “Aqui há um problema psicológico muito fodido” [ri]. Quer dizer, a única forma de falar estas cousas é falar em pé de igualdade, e o único jeito de falar em pé de igualdade é ter um produto competitivo, moderno, exigente e capaz de despertar o interesse no mundo. E ter o país atrás de nós. O que não podemos, e este é um aspeto do problema, é construir uma fórmula de tubo de ensaio, uma língua de universidade ou e laboratório, por muito perfeita que pareça, e que depois o falante do Val Minhor, ou o falante da Terra Chã ou o falante de Bertamirães diga… Isso não tem nada a ver comigo.
Nos anos 70, com os artigos de Rodrigues Lapa ou o manifesto dos 13 de Roma, Carvalho começou a mostrar mais atenção à proposta reintegracionista. Dizes que certas análises de Carvalho ficaram desatualizadas com a passagem do tempo mas…
[Interrompe] Não foi até os anos 80; nos anos 70, quando era o meu professor, nunca falava do tema nas aulas. Foi nos 80 quando mostra essa postura.
Quando começou o ostracismo.
Sim, bom… Houve discrepâncias com o grupo Galáxia, com o próprio Fernández del Riego, Ramón Piñeiro e gente da Academia.
Esta necessidade da que falas de projetar o galego para o exterior cumpre formulá-la também a partir de uma releitura da situação do galego, que mostra uns dados realmente alarmantes. São estes dados uma constatação do fracasso da política linguística das últimas décadas?
Sim, mas isso não é solucionado com um problema ortográfico. Não é um problema ortográfico.
Mas Carvalho, por exemplo, no seu Do galego e da Galiza já prognosticava estas questões…
Mas não só Carvalho! Alonso Montero no famoso Informe Dramático sobre a língua galega diz isso claramente.
Carvalho prognostica a situação que vivemos agora e propõe soluções para a crise linguística inserindo o galego no sistema linguístico da Lusofonia. Então, com isto em mente… o futuro da língua passa pela Lusofonia? Ou, como disse Castelao, a nossa língua floresce em Portugal?
Eu, como disse antes, penso que o futuro do galego passa pelo galego. Eu penso que o futuro do galego passa por uma Galiza moderna que crie produtos culturais e de todo o tipo que situem a Galiza como uma sociedade desenvolvida que despertem interesse. E que ademais as galegas e os galegos estejam participando desse discurso. Esse é um problema político que temos atualmente, porque não conseguimos construir um discurso motivador onde o país se reconheça. Na medida em que isso seja produzido, a Galiza vai adquirir peso específico próprio, porque isso também está em função das criações que tivermos, das que difundires e espalhares. Logicamente, eu sou partidário de abrir espaços de relação com essa família a que pertencemos.
“Um problema político que temos atualmente é que não podemos construir um discurso de ilussão onde o país se reconheça. Logicamente, eu sim sou partidário de abrir espaços de relação com essa família à que pertencemos “
Achas então que é uma estrategia acertada? Porque as instituições…
Que estratégia?
Reconhecer o princípio de irmandade com o português e fomentar…
Sim, sim, mas temos de ter o país atrás de nós, porque temos que explicar ao país a utilidade de tudo isso. E temos ademais que reconhecer que o país tem que se reconhecer nesse idioma, e o idioma de além Minho é uma língua irmã, mas não é a língua que estamos a falar agora.
“A única forma de falar em pé de igualdade com o resto do mundo é ter um produto competitivo, moderno, exigente… e ter o país atrás de nós. Não podemos construir uma língua de laboratório e que depois o falante de Bertamirães não se sinta representado”
Com estes dados de falantes na mão… Pensas sequer que o país se reconhece no galego?
Mas não é por um problema ortográfico! Não se reconhece no galego porque, e isso leva-nos a outra questão, há muita impostura no galego. As classes dirigentes e os setores dirigentes da sociedade galega predicam uma cousa e fazem outra. Eu não posso ir a determinado galego, que não vou dizer quem, e esse político com uma alta responsabilidade, sai do gabinete e com a sua secretária, com o seu chefe de gabinete… fala em castelhano. Isso a sociedade vê-o. Então isto é uma grande impostura, é uma representação. E nós temos que conseguir que a sociedade viva a língua e seja ciente da própria coerência das classes dirigentes também.
Esse “viver a língua” é muito abstrato; parece que interpelas a emocionalidade e…
Não, e também à utilidade económica e…
E a utilidade económica do galego passa pola Lusofonia?
Hum… Sim, sim ou não.
Uma das teses de Carvalho era que não seria possível convencer através da ligação emocional, mas com motivos práticos…
Não sei, não acredito nisso… Volto ao de antes, o galego é o galego, o galego não é o português. O galego não é o brasileiro nem é o angolano. Então, essa afirmação tem que partir de em que medida podemos nós assumir ou refletir sobre modificações. Bom, temos que valorar isto com a cabeça fria e saber a que nos arriscamos se introduzimos modificações desse tipo, que têm que ver com a indústria da cultura e da comunicação e, sobretudo, com a capacidade dos cidadãos e cidadãs para se reconhecerem nessas fórmulas. A mim assusta-me muito porque, igual que na política, trabalhamos num tubo de ensaio e pensamos que como nós somos muito inteligentes o resto das pessoas têm que dizer amém. E não, porque as pessoas vão por outro lado.
“O galego é o galego, o galego não é o português nem o brasileiro nem o angolano”
Carvalho Calero era sócio de honra da AGAL, que propõe o modelo binormativista. Qual é a tua impressão sobre esta proposta?
Eu penso que a fórmula binormativista não é acertada, porque uma língua é uma norma. E já sei que se fala do luxemburguês e do norueguês, que são dous casos muito específicos e penso que não têm que ver com o galego. Segundo, nós, sobretudo, para as escolas e o sistema educativo, para os contratos, a Administração pública, para os contratos, os notários e os tribunais… Isso temos que tê-lo muito claro, tem que haver uma única norma.
Antes falavas duma preocupação de tipo emocional, ligada com “viver a língua”, e agora expressas uma preocupação de carácter muito mais prático.
Não, não, sigo estando na questão prática!
Então, fazendo um exercício de imaginação, partindo duma hipótese… Se instaurássemos o binormativismo, qual achas que seria a melhor forma de instaurá-lo? Seria melhor aplicá-lo como segunda língua estrangeira através do português, dentro do próprio currículo de galego…?
Não, eu não estou pelo binormativismo. Não. Não. Estou por uma norma única e oficial.
Mas imagina…
Não, não, espera, porque eu isto já o falei. Eu sim estou porque o português entre no sistema educativo como uma referência… que saibam que existe uma língua irmã distinta que está muito próxima da nossa e que nos permite uma projeção também internacional, através dela, no sentido prático: o português. É o que digo eu, por exemplo, em relação à revista Grial. Em Grial temos duas línguas: o galego e o português.
Então estarias a favor de introduzir o português na educação, como dita a Lei Paz Andrade?
Sim, eu apoio a Lei Paz Andrade. O galego, na matéria de galego, e agora, se quereis estudar português, estudais português.
E introduzir a aprendizagem da ortografia portuguesa dentro do currículo de Língua e Literatura Galegas?
Eu estou de acordo com conhecer o português e estudar o português e que a gente descubra que a língua galega e a língua portuguesa são línguas irmãs e que com muito pouco esforço -que foi o meu discurso de entrada na Academia- tu podes incorporar-te a uns espaços linguísticos e culturais enormes, sem deixar de ser galegos.
“A língua galega e portuguesa são línguas irmãs, e com pouco esforço podes incorporar-te a uns espaços linguísticos e culturais enormes, sem deixar de ser galego”
Pelo que dizes… Achas que há um risco com a proposta reintegracionista ou com o binormativismo de perder identidade ou autonomia própria como galegos? É por isso que insistes em que ‘o galego é o galego’?
Sim. E ademais tem um custo que pode significar perder.
No teu discurso de entrada na Academia falavas das lendas populares da Trabe de Ouro e da “paxariña de Armenteira” como uma representação da tensão histórica perante a encruzilhada vital que a nova modernidade nos enfrenta. [A “paxariña de Armenteira” é exemplo da tentação de se deixar levar perante a insegurança de não saber, “melhor deixar as cousas como estão e não arriscar”, perante o risco, a preparação, o estudo e o conhecimento que exige a Trabe de Ouro.] No teu discurso falas de que “o futuro é um projeto em construção, implica vontade de querer construí-lo”. Continuar a insistir nesse modelo de ‘o galego é o galego’ não será a “paxariña de Armenteira”?
Não sei. Eu não faria essa comparação. Para centrar bem a minha posição, que é o que me interessa: o galego é o galego, e o galego são os falantes da língua galega, e os falantes de língua galega têm que se reconhecer no seu idioma, tanto no uso como no prestígio e na autoestima. A língua é um capítulo mais da capacidade de expressão e criação que tem um país no âmbito da economia, no âmbito da empresa, no âmbito da cultura, etcétera. Na medida em que este país se desenvolva e entre na modernidade, nos desafios do século XXI, este país vai ser capaz de gerar produtos que interessem no mundo. E isso é identidade própria. Nós não precisamos do castelhano para viajar pelo mundo nem precisamos de Lisboa para viajar pelo mundo. Entre outras cousas porque Lisboa não acaba de entender-nos nada bem, igual que Madrid. Brasil, repito, é outra história, há outra sensibilidade. Porque Lisboa e Madrid têm o complexo de império, não são capazes de superar que, claro, “roubam-nos a língua”. Vamos ver, vós não sois proprietários da língua. E os angolanos há tempo que se desentenderam desta visão, já nem aceitam os acordos.
Brasil tem melhor disposição mas ao mesmo tempo não precisa de mais ninguém. É tão imenso que, culturalmente, não precisa de importar nada.
Porque tem uma criatividade imensa. Há países imensos que não acabam de ter capacidade de entrar no mundo. É rico, mas há países muito ricos que estão mortos culturalmente falando. É um país formidável, com uma música e uma cultura impressionante… E para nós, no nosso imaginário coletivo, no da nossa geração, os portugueses eram os senhorinhos que vinham a Ponte Vedra com um chapéu preto, sentados nas escadas… E quando dizíamos que algo era uma ‘portuguesada’ já sabíamos a que se referiam, igual que quando eles diziam que algo era uma ‘galegada’… Até que aparece Vinícius de Moraes e até que aparece a bossa nova… E isso também é Portugal! Ou até que de repente o pai de Antonio Fraguas vai a Niterói (Brasil) trabalhar nos caminhos de ferro e descobre que a sua língua de Cotobade é útil, não o isola. Os imaginários vão mudando. E é nesse tipo de relações que vão mudando o imaginário coletivo que temos que trabalhar.
“Os imaginários vão mudando, como o pai de Antonio Fraguas quando vai trabalhar nos caminhos de ferro a Niterói e descobre que a sua língua de Cotobade é útil”
Agora, meter o binormativismo agora no sistema eu penso que seria, na minha opinião, pedagógica, estratégica e politicamente falando, um disparate. Bem-intencionado, mas um disparate.
Tens muita preocupação por como a gente identifica e interioriza a língua. Há também gente nova que está a dar o passo para o galego, mas não só, porque passam do castelhano para o galego reintegrado. Interiorizam a língua, e interiorizam-na inscrita na Lusofonia. Esta gente… como contas com esta gente nova na estratégia que defendes?
Que utilizem o português e que não abandonem o galego. Tenho um filho aí: o meu filho escreve como escreves tu.
Essa é a tua ideia?
A minha ideia é que não devemos viver acomplexados pelo castelhano nem viver acomplexados pelo português. Volto ao de antes, o galego é o galego, e o galego tem que construir, mesmo para, chegado o momento, poder modificá-lo, tem que construir a sua própria identidade, a partir da autoestima e a partir dum produto moderno, competitivo na criatividade. E depois de chegarmos aí, podemos abordar diferentes passos, porque isto não é eterno. As cousas não são assim para sempre. Se calhar, dentro de dez anos ou dentro de cinco anos estamos falando de que já podemos enfrentar mais cousas. Deixemos que o debate continue. E que possamos ter o debate como o estamos a ter eu e tu agora.
“As cousas não são assim para sempre. Se calhar dentro de dez anos ou cinco estamos a falar de que já podemos enfrentar mais cousas. Deixemos que o debate continue”
Porque é certo que eu também tenho as minhas inseguranças, e as minhas contradições, e eu também sou neofalante de certa forma. Falava-o com Otero Pedrayo quando o entrevistei para Uma dúzia de galegos. Perguntava-lhe por isto e ele disse ‘a modo, rapazes, porque aqui todos somos conversos’. Quer dizer, todos os que conformam o que chamaríamos o sector consciente na política cultural e inteletual galega… nalgum momento demos o passo. Nalgum momento tivemos que tomar posição porque a derivada levava-nos sempre a Madrid, sempre ao castelhano. E naquele momento, quando dás um passo, é o resultado também duma reflexão, duns meios e duns afetos, e também duma riqueza que vais partilhando e vais descobrindo… Neste caso é a música, a literatura, as artes, o cinema, mas também é a vida social, o desenho das marcas comerciais… Tudo isso vai criando uma atmosfera que permite dar o seguinte passo. Eu insisto: a língua galega não é uma língua local, é uma língua que está em condições de dialogar com outras línguas irmãs que nos abrem ao mundo, mas é o galego e tem de ter os falantes atrás. E os experimentos… cuidado com os experimentos.